30 de dezembro de 2024
Cinquentenário do álbum Maysa (1974)
3 de junho de 2024
Maysa entrevistada por Djenane Machado, 1971
Por vezes não contamos com todas as informações sobre uma reportagem como é o caso desta entrevista de Maysa por Djenane Machado. Não sei em qual revista ela foi publicada, mas certamente foi no ano de 1971. Quando Djenane e Maysa estavam no elenco da novela O Cafona da TV Globo.
As Reportagens de Djenane
Maysa: - Eu me matava por desamor
Quando eu estava no primário, tinha uma mania: desenhar
olhos de pessoas famosas nos meus cadernos. Tinha verdadeira obsessão por olhos
bonitos. Fazia-os com um esforço desgraçado porque sempre fui uma negação em
desenho. Eu desenhava os olhos em cima e o nome da pessoa embaixo. Era
gozadíssimo... Tinha uns preferidos, verdes, imensos, e o nome vinha embaixo:
Maysa...
Eu cresci, Maysa viajou; estudei teatro; ela fazia um
tratamento numa clínica na Espanha. Eu me tornei atriz. Eu me tornei atriz e
entrei para a tevê; ela volta para o Brasil. Linda, magra, cantando como nunca.
Foi aquele espanto, aquela alegria. Todos queriam saber se ela tinha mudado,
como tinha emagrecido, que diabo tinha acontecido depois daquele tempão todo.
Choveram entrevistas. E foi por causa destas entrevistas que embatuquei e
cismei com ela de vez.
Maysa era um pouco eu. Seu modo de pensar, seus problemas,
angústias tinham muito a ver comigo. Poxa, pensei comigo mesma, achei uma
pessoa que não vai se assustar com meus problemas porque seus grilos são
parecidos com os meus. Fui ver o seu show no Canecão e jurei que ia ser amiga
dela. Não deu outra coisa, claro...
Houve de cara uma comunicação muito forte, imensa e acho
eterna. Quando acontece um troço bacana ou então ela está na fossa, liga pra
mim e eu corro para a casa dela pra gente curtir juntas. Enfim, a gente se dá
muito bem, a gente briga muito, mas nada diminui o carinho. Hoje, pra mim, ela
não se chama Maysa. Chama-se Ma. E eu passei a ser DG.
EU – Ma, me conta da tua infância, da tua babá, da tua mãe,
do teu pai, das coisas que te marcaram. Da tua casa.
ELA – A minha infância foi uma árvore, um mar que servia de
quintal de minha casa, foi um amor muito grande e de muita certeza, coragem.
Foi boa demais para o que estava por vir. E veio, e como... minha babá, que
continua comigo até hoje, continua com aquele cheirinho de alfazema no cangote
onde muitas vezes eu me agarrava de medo da noite e do escuro. Mamãe, aquela
mulher intocável, linda. A minha deusa. Papi, aquele ser quase proibido, sempre
longe por causa do seu trabalho, forte como uma árvore, doce como um beijo que
me dava no travesseiro quando estava no colégio interno, vivendo a imagem dele
e de mamãe, naquela carícia medrosa e sozinha. Tudo me marcou na minha
infância, porque eu sabia que ela ia terminar rápido.
- Ma, me conta do teu colégio (se você era boa aluna ou se
tinha boas amigas).
- Meu colégio não era ruim. Eu é que era ruim no colégio,
não por falta de disciplina, mas por saber que estando interna eu estava
perdendo a juventude de meus pais.
- Esse problema do
seu pai e da sua mãe te marcou muito. Você é triste por causa disso?
- Triste, eu acho; mais que triste, só.
- Você tinha muitas amigas?
- Nunca pude ter amigas. Nunca me entendi muito com
mulheres.
- Por que você diz sempre que sua mãe era uma deusa para
você. Por que sempre era, no passado?
- Ela ainda é. Só que agora ela é minha também. Antes era só
do papai.
- E André, teu primeiro marido, ele era super-mais-velho que
você. E você uma garotinha. Você achava isso legal?
- No princípio, André era a figura do pai. Depois, mudou e
eu passei a ser a mãe dele. Então, eu cansei. E descansei...
- Me conta um troço, Ma. Sempre achei o suicídio um ato de
extrema coragem. Quando você tentava se suicidar, você realmente queria acabar
com tudo ou o que você queria, no fundo, era começar outra coisa diferente?
- Os meus suicídios sempre foram pra valer. Geralmente, eu
só faço as coisas pra valer. Depois, foi que eu descobri que aquilo era uma
enorme procura de amor, de chamar atenção sobre mim. É, é um ato de coragem.
Mas é a coragem mais inútil que eu já vi.
- Sabia que você ia dizer isso. Você já tentou a análise?
- Eu já me meti em análise, sim.
- Você teve coragem mesmo de se conhecer?
- Eu acho que sim, que teria coragem de me conhecer, não sei
por quê, não? Mas prefiro conhecer os outros, gastar meu tempo conhecendo os
outros. É mais importante para mim, é claro.
- Falou e disse...
- Ma, por que você bebe? Se eu sei que você tem horror ao
gosto da bebida?
- Por que é que eu bebo, DG? Pela mesma razão que você.
Realmente, eu não gosto do gosto da bebida. Mas tem o efeito depois. Às vezes,
é bom. Às vezes, não, como você sabe tão bem.
- Mas eu gosto do gosto. Me responde agora. Eu sei que você
adora a Elis Regina. E sofre à beça essa distância. Por que você não tenta se
aproximar dela?
- Djenane, você às vezes julga os outros por si mesma. Nós
temos, eu e você, alguma coisa em comum, mas nesse ponto não. Quem adora a moça
é você. Eu, não. Quanto a sofrer a distância, como é que a gente sofre a
distância se nunca houve presença? Você é que está sofrendo, porque ruiu a
historiazinha que você fabricou, querida.
- Você muda muito de opinião, Dona Maysa. E que
historiazinha é essa? Como eu gosto muito de você e gosto também dela, queria
que vocês fossem amigas, só isso. Vamos mudar de assunto. Quais são as coisas
que mais te emocionam num ser humano?
- As coisas que mais me emocionam num ser humano, é? A
capacidade de amor, de humanidade que possa caber dentro de uma pessoa. Mesmo
que sejam pequeninas. De tamanho, estou dizendo?
- Eu não sei se a senhora está me espinafrando ou se está me
elogiando. Como eu sou uma moça muito educada, pelo sim pelo não, obrigada pela
parte que me toca. O que é que você primeiro olha numa pessoa?
- Nos olhos. Pra mim, as pessoas estão dentro dos seus
olhos.
- O que é que você não gosta numa pessoa? Aquilo que você
não admite?
- Apunhada pelas costas, a mentira gratuita, as pessoas
falsas, mesquinhas. São odiosas.
- Você acredita nas pessoas? Porque a impressão que você me
dá é de que você só acredita em você mesma. Ponto final.
- Você vê. Se eu não tivesse acreditado em você, eu poderia
ter ido dormir sem essa afirmação idiota sua. Se eu só acreditasse em mim, DG,
eu já estaria morta, morta mesmo.
- Calma. Era só uma impressão minha, poxa. Guarda a faca
afiada e o revólver e vamos mudar o assunto de novo.
- O que é que você queria, agora?
- No presente momento, gostaria de já ter estreado no
teatro. Amanhã ou mesmo daqui a pouco, eu não sei...
- Do que é que você gosta?
- De tanta coisa. De Leila, por exemplo (Leila é uma
criatura divina que a gente conhece. Uma pessoa tão boa, tão desarmada, dessas
que não existem mais).
- Do que é que você tem medo?
- Eu não tenho medo de nada. Só de gente burra.
- Você não tem medo da solidão?
- Eu odeio a solidão quando não posso estar só. Eu amo a
solidão quando preciso dela.
- Eu sei que você tem sempre uma musiquinha que você curte à
beça. Foi o Midnight Cowboy, depois outras, e agora, qual é?
- Agora é o Tema de Simone. Modesto, né?
- Ultimamente, você já esteve tão feliz a ponto de querer
que o tempo parasse?
- Faz tempo que não. E não sei até onde o tempo devesse
parar. As coisas se tornariam muito iguais, portanto muito chatas.
- Qual é a hora do dia mais chata para você?
- A hora em que vejo um cachorrinho ou um animalzinho qualquer
com fossa, só, sem possibilidades de poder falar. Nada há mais triste, seja a
hora em que for!
- Que lindo e que triste, poxa. Vamos brincar um pouco
agora, Ma. Eu digo uma palavra e você associa a outra. Tem que ser a primeira
que vier à cabeça, senão não vale. Quero ver como anda a sua cuquinha (não
perco essa mania de psicóloga).
Djenane – Saudade.
Maysa – Filme.
D – Felicidade.
M – Mar.
D – Amizade.
M – DG.
D – Homem.
M – Pai.
D – Mulher.
M – Eu.
D – Avião.
M – Desejo.
D – Miguel.
M – Paz.
D – Violência.
M – Amor.
D – Telefone.
M – Chato.
D – Eu.
M – Eu.
D – Árvore.
M – Teatro.
D – Sexo.
M – Paz.
D – Fim.
M – Começo.
6 de junho de 2023
Playlist do Blog oficial Maysa no Spotify
Em comemoração ao que seria o 87º aniversário de Maysa, o Blog
elaborou especialmente uma playlist no Spotify com mais de duas horas de duração contendo
o melhor de Maysa, já que a playlist criada pelo Spotify This is Maysa é falha, contendo músicas que são de uma outra
cantora homônima. Viva Maysa!
11 de abril de 2023
Entrevista de Maysa à Rádio Jornal do Brasil, 1973
Entrevista de Maysa à Rádio Jornal do Brasil
Há cinquenta anos, em março de 1973, Maysa concedeu uma
entrevista ao jornalista Simon Khoury da Rádio Jornal do Brasil, onde, sem
papas na língua e bastante ferina, comenta o fracasso de sua segunda temporada no
Canecão, em 1970, o porquê dela ter detestado gravar uma versão em
português de "Love Story", critica Vinícius de Moraes e outros nomes
da MPB, relembra episódios de sua carreira e canta à capela o "Tema de
Simone", sua música favorita dentre as que compôs. Imperdível. Ouçam Maysa!
4 de outubro de 2022
Maysa: "É tão difícil caminhar" - Ele Ela, 07/1975
Maysa: “É tão difícil caminhar”
Entrevista a Clóvis Levi
“Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...”
Em 1969 você afirmou: “Sei que estou me desorganizando para me organizar de novo.” Em 1975, seis anos depois, como vai essa sua organização?
- Essa declaração foi feita quando voltei ao Brasil, medrosa, assustadíssima, querendo fazer uma porção de coisas diferentes, como a preocupação de limpar aquela imagem da mulher bêbada, da mulher gorda. Hoje estou procurando ficar em paz, tranquila, estou me deixando encontrar.
Porque você disse que a Maysa cantora não tem relação alguma com a Maysa ser humano?
- Porque nunca consegui ser a pessoa. Eu achava que só viam, em mim, a cantora com aquela imagem negativa, e nunca o ser humano. Havia, então, uma grande carência e um profundo desencontro dentro de mim: eu nunca sabia se estava sendo recebida como uma cantora ou como eu mesma. Eu mesma acabei sem saber quem eu era. E, quando uma pessoa se desconhece, ela não sabe nunca o que dar para os outros.
Porém a Maysa com quem conversei, parece estar cada vez mais apta ao ato de doar. Principalmente, porque começa a dar a si mesma, um justo valor.
- Hoje em dia já estou achando que “Maysa” é um negócio muito sério, é um negócio que impõe um respeito filho da mãe, que tem uma verdade... tem um peso muito importante. Estou começando a me achar uma pessoa muito bacana. Só está faltando me aproximar de mim mesma mais um pouquinho.
E o que é que você está fazendo para incentivar essa aproximação?
- Estou fazendo análise! (“Ela se ilumina, passa a falar com mais entusiasmo”). Faço análise de grupo e individual com uma das pessoas mais maravilhosas que já vi, ela é um sol, uma dimensão. (“Ela faz uma pequena pausa. Fica tensa.”) Mas, apesar disso, acordo sempre muito angustiada. É uma coisa muito estranha. Minhas mãos ficam muito frias e vem o desespero de não saber exatamente o que vai acontecer, um desespero de encontros, de desencontros, então, geralmente, eu me escondo, me meto numa cova e fico lá dentro. E fica difícil, para mim, tomar uma atitude que eu tenha programado. Sou incapaz de me programar, tenho medo de me programar.
Como é que você está se sentindo agora? Com disponibilidade para a entrevista? Ou angustiada, amargurada?
- Estou muito angustiada. Além do mais, hoje é segunda-feira, e segunda é sempre um dia de começar coisas, ainda é dia de voltar para o colégio interno.
Todo começo é angustiante?
- É. Angustiante, tumultuado, confuso. Eu não sei se estou agradando e meu medo é sempre esse: tenho um certo receio de ser demais.
Essa sua preocupação em agradar não será uma exagerada (e compreensível, num processo de análise) reação à a sua famosa agressividade?
- Acho que não, porque, no fundo, sempre tive essa preocupação. E eu acho que o que me fazia agressiva era a bebida. Era, talvez, para me defender de uma certa coisa que eu sabia que, de certa forma... fazia mal... ou melhor, pegava mal... fui criada dentro desses padrões que determinam que mulher não bebe. Então eu me defendia antes que me acusassem.
E hoje, depois de ter se submetido a um doloroso tratamento de desintoxicação, como é que você está com a bebida? (A resposta vem firme e imediata.)
- Muito bem. Totalmente em paz com ela.
Mas você bebe normalmente?
- Não. (Aí, então, Maysa vacila.”) Bebo... não... não posso. Não devo (A voz quase some). Mas faço de vez em quando. (“Assume a situação e a voz volta a ficar firme.”) Há momentos em que tenho uma terrível necessidade. Mas, agora, eu faço diferente. Fico dentro de casa. Antes eu ia para a rua... agredia meio mundo...
Mas você ainda se embriaga mesmo dentro de casa? Perde o controle?
- Não. Não. Não perco o controle (“Agora ela relaxa e sorri.”) ligo para o mundo inteiro. É aí que eu busco o relacionamento, é aí que eu tenho coragem de falar com as pessoas, de dizer o que sinto, de dizer que gosto delas... tenho uma profunda necessidade de dizer que amo as pessoas, mas só tenho coragem de fazer isso com a ajuda da bebida. Chamo aqui para casa as pessoas que eu amo, tentando juntar essas ilhas. As pessoas estão ficando cada vez mais sós, estão se separando cada vez mais, ficando cada vez mais ilhadas.
Mas você também ajuda esse processo, ilhando-se dentro desse apartamento...
- Ajudo. Ajudo muito. No momento em que eu quero essa aproximação...
Você mesma não acredita nela.
- Exatamente... e, aí, talvez, eu assuste as pessoas. Eu, geralmente, acabo destruindo as amizades, destruindo aquele amor que estou querendo dar. Geralmente, as pessoas não gostam de bêbados.
Você é uma bêbada muito chata? (Ela volta a ficar tensa.)
- Acho que sim. Muito chata. Tanto que já estou tão consciente disso que fico dentro de casa. (“Relaxa e ri.”) Fico só no telefone. (“Faz uma pausa. Fica séria.”) Bêbada, sou mais adulta, sabe? E sóbria, sou mais criança. Ficando bêbada eu assumo essa possibilidade de relacionamento que eu não devo ter tido, quando criança.
Depois de ter feito uma desintoxicação e continuando a beber você não está ameaçada de voltar a ser uma bêbada irremediável, sem controle?
- Sei que sou uma pessoa doente em relação à bebida, disso não tenho a menor dúvida. Sou uma pessoa que não pode se dar ao luxo de beber dois uísques só e parar. Então eu tenho de me moderar nisso. A desintoxicação foi uma coisa horrível, foram meses de grades, isso já tem seis, sete anos. mas os médicos me avisaram que eu iria passar por crises incríveis e que tudo seria muito difícil. Então, quando entro em crise, tento não beber. Eu procuro beber quando estou o mais relaxada possível.
Fale um pouco sobre os seis meses de grades (A resposta é definitiva.)
- Não!
É verdade que você ficou amarrada na cama? (Pelo rosto de Maysa passa uma sensação de terror.)
- Não! Não quero falar sobre isso.
Porquê? Isso ainda não está resolvido dentro de você? (Ela fala rápido, procurando cortar esse assunto.)
- Porque não interessa. (“Bem angustiada”) ... não me interessa... não me interessa... não é uma coisa sobre a qual interesse falar...
- Antigamente eu só chorava quando bebia. Atualmente, já consigo chorar sem beber e, que eu me lembre, é uma coisa de muito pouco tempo para cá. Sabe... é um negócio assim de você sentir... (“Maysa respira profundamente”) ... sei lá... agora mesmo, quando você me fez uma pergunta, já nem sei qual foi, a lágrima já estava saindo normalmente. E isso é uma coisa muito difícil de acontecer comigo.
Como vai o seu relacionamento com as pessoas?
- Está péssimo. Você pode chamar de pretensão, mas são poucas com quem eu gostaria de bater papo. Hoje, não tenho mais saco para aguentar determinadas pessoas (e determinadas entrevistas, inclusive, com gente que vem aqui me perguntar besteira). Parece que falta uma certa dimensão humana, sei lá... Tenho muita inveja das pessoas que falam nos “meus velhos amigos”, que se respeitam, que se veem. Com seus defeitos e qualidades, não importa.
Você não consegue manter seus amigos?
- Não. Eu perco. Perco porque fujo deles com medo de perdê-los. Fujo antes que isso aconteça.
Quantas pessoas você acha que são realmente suas amigas? (Há uma pausa, ela vacila um pouco.)
- Não sei... a Leila (“sua secretária”) é uma grande amiga que eu tenho, é uma mulher extraordinária... acho que todo o grupo que está fazendo análise comigo, não sei se são meus amigos por forças das circunstâncias, mas são meus amigos... acho que vou parando por aí... tem o Mister Eco, tenho um carinho enorme pelo Mister Eco (pausa.) Bom, tem o Aluísio de Oliveira, mas o Aluísio é diferente... é meu irmão, é outra coisa. Luisinho Eça... tenho paixão por Luisinho, é meu compadre... Gal Costa, por exemplo, é uma das coisas mais lindas que já vi na minha vida, coisa mais pura, mais doce, mais suave. O que essa menina tem dentro dela para dar, em nível de carinho, é uma coisa maravilhosa.
Mas você encontra esses amigos só uma vez na vida e outra na morte?
- Não. Gal e eu temos um relacionamento bastante bom. Mister Eco, por exemplo... a gente sempre se fala. Eu tenho uma saudade enorme dos meus amigos que já morreram: Antônio Maria, Stanislaw, Dolores. A gente era uma coisa, era um bloco – embora embalado no álcool – mas era um negócio para valer, a gente se via sempre, estava sempre junto, as pessoas se precisavam. Hoje todo mundo é muito sozinho, a solidão é grande demais.
Mas a solidão existe mesmo com o Carlos Alberto?
- O que eu gostaria de obter na vida, em termos sentimentais, seria a completa realização desde encontro com Carlos. Tem seus atritos, mas eu acho... tenho a impressão que vai bem...
Há quantos anos?
- Desde 72. Está se lixando... se polindo, as arestas estão sendo aparadas. Carlos é uma pessoa extraordinária, de uma pureza, de uma beleza... é um homem que vê transparente... eu gostaria que isso se firmasse, que fosse uma coisa que realmente prevalecesse. Estou cansada já de... de buscas... de desencontros. Estou realmente cansada, amargurada. Por enquanto esse relacionamento está meio difícil porque nós dois tivemos uma vida muito tumultuada. Então nós temos muitos, muitos, muitos machucados pelo corpo inteiro, então de vez em quando a gente se agride muito, às vezes até sem querer... então, dói profundamente, dói e há um medo que a gente volte a encontrar aquelas situações do passado, aquelas pessoas, aquelas coisas ruins da nossa vida. E a gente, então, se recolhe como uma ostra.
E por falar em se recolher, fale um pouco da crise que fez você se fechar como uma ostra por causa da gordura.
- Foi terrível. E não foi tanto no sentido da estética. Acho que aquela gordura toda era uma espécie de capa para me esconder, quase um invólucro. Eu tenho a impressão de que aquele negócio todo suava, me parecia uma coisa suja. Era uma imagem feia. Mas, ao mesmo tempo em que eu não cuidava do corpo, eu também me defendia: na televisão, só deixava que a câmera me pegasse do pescoço para cima. Trinta e seis quilos a mais...foi uma época realmente terrível. E a coisa ainda não está resolvida: hoje, se eu vou comprar roupa, vou direito para as cores escuras, para o preto, porque a coisa da gordura ainda está dentro de mim, eu não estou acostumada ainda.
Há alguma possibilidade de você voltar a engordar?
- Não. Inclusive, é horrível quando eu engordo um quilo minha cuca fica estourando, é um negócio de louco (Pausa. Sorri.) Agora, tem vezes que não dá, tem dias que preciso comer loucamente, é um processo de carência, sei lá. Como à beça e aí me vem o sentimento de culpa, eu engordo dois, três quilos, é um troço chato pra burro. Mas eu jamais voltarei a ser gorda. Não é só a gordura física, mas o que ela representava dentro de mim.
A gordura dificultou o teu relacionamento com as pessoas?
- Acho que sim. Pelo menos, durante o dia. Eu não me lembro de ter saído durante o dia, naquela época de gorda.
Mas eu não estou falando de você para as pessoas; e sim, das pessoas para você.
- É. Eu achava que as pessoas se sentiam agredidas. Eu tinha uma casa na Barra e, lá, recebia meus amigos, mesmo de maiô. Mas, naquela época, eu nunca colocaria um maiô aqui em Copacabana.
(Hoje Maysa é uma mulher magra. Porém seu rosto está um pouco marcado e há um ar de cansaço em torno dela. Mas, paradoxalmente, o que se nota é um renovar constante de esperanças, um incrível potencial de vida. Sua vontade seria a de fazer música, jornalismo, teatro, cinema, tevê. Gosta de tudo e é pena que haja tão pouco tempo. Todavia, com tantas coisas para fazer, ela se tranca em casa e nada produz. O potencial está emperrado. Ela é uma artista, hoje, com sua criatividade minada. Por que Maysa nunca mais conseguiu compor?)
Em 69 você declarou que não havia atmosfera para compor. Isso existe ainda hoje?
- Existe.
Atmosfera interna ou externa?
- Interna. A externa, inclusive, em que ela pode me afetar? Por eu não estar fazendo sambinha de breque? Por não estar atualizada com o momento? Eu não sei o que é estar atualizada com o momento, porque o que está dentro de você é o que vale, o momento é o meu e não o que está lá fora. Tenho escrito muita poesia, muita coisa..., mas eu não tenho coragem... não sei o que é... não estou conseguindo botar música...
Há quanto tempo você não compõe?
- Desde 71. O “Tema de Simone”, para a novela “O Cafona” foi a última coisa.
Mas não existe um motivo específico que impeça você de criar?
- Aí é que está: não sei. Tá embutido, tá lá dentro..., mas não sei o que é....
(Maysa, uma mulher sempre à procura de respostas. Maysa, uma mulher de 39 anos que não dorme de perna esticada com medo que lhe puxem o pé (“É um trauma do colégio interno, a pior coisa que aconteceu na minha vida”). Maysa, uma mulher adulta que se sente – no mundo – como a Maysa-criança: sempre procurando agradar as freiras do internato. Para não ser nunca castigada. Para não ficar sozinha no quarto escuro. Maysa, cujo nome está tão ligado – muitas vezes levianamente – à palavra suicídio.)
Afinal, você tentou o suicídio quantas vezes?
- Várias.
E sem estar bêbada?
- Algumas vezes.
Mas é evidente que uma pessoa que vive tentando se suicidar não está mesmo a fim de morrer.
- Também acho. Eu sei que não quero morrer. Mas acontece que isso tudo é uma espécie de apelo, um pedido de proteção. A gente, de repente, se vê só, se sente rejeitada. E a gente sabe que uma tentativa de suicídio, traz, de novo, para perto de nós, as pessoas de quem a gente gosta.
E é importante, neste momento, lembrar a fase inicial da entrevista. Pois é com ela que a entrevista acaba:
- Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...
(Reportagem publicada originalmente na revista Ele Ela de julho de 1975.)
Agradecimento: Maysa Oficial
7 de julho de 2022
Escrava de sua alma - entrevista na Argentina, 1971
16 de fevereiro de 2021
Maysa e Maria Bethânia
Quando Maysa encontrou Maria Bethânia
Diário da Noite - São Paulo - 16 de setembro de 1968