3 de junho de 2024

Maysa entrevistada por Djenane Machado, 1971


Por vezes não contamos com todas as informações sobre uma reportagem como é o caso desta entrevista de Maysa por Djenane Machado. Não sei em qual revista ela foi publicada, mas certamente foi no ano de 1971. Quando Djenane e Maysa estavam no elenco da novela O Cafona da TV Globo. 


As Reportagens de Djenane 

Maysa: - Eu me matava por desamor


Quando eu estava no primário, tinha uma mania: desenhar olhos de pessoas famosas nos meus cadernos. Tinha verdadeira obsessão por olhos bonitos. Fazia-os com um esforço desgraçado porque sempre fui uma negação em desenho. Eu desenhava os olhos em cima e o nome da pessoa embaixo. Era gozadíssimo... Tinha uns preferidos, verdes, imensos, e o nome vinha embaixo: Maysa...

Eu cresci, Maysa viajou; estudei teatro; ela fazia um tratamento numa clínica na Espanha. Eu me tornei atriz. Eu me tornei atriz e entrei para a tevê; ela volta para o Brasil. Linda, magra, cantando como nunca. Foi aquele espanto, aquela alegria. Todos queriam saber se ela tinha mudado, como tinha emagrecido, que diabo tinha acontecido depois daquele tempão todo. Choveram entrevistas. E foi por causa destas entrevistas que embatuquei e cismei com ela de vez.

Maysa era um pouco eu. Seu modo de pensar, seus problemas, angústias tinham muito a ver comigo. Poxa, pensei comigo mesma, achei uma pessoa que não vai se assustar com meus problemas porque seus grilos são parecidos com os meus. Fui ver o seu show no Canecão e jurei que ia ser amiga dela. Não deu outra coisa, claro...

Houve de cara uma comunicação muito forte, imensa e acho eterna. Quando acontece um troço bacana ou então ela está na fossa, liga pra mim e eu corro para a casa dela pra gente curtir juntas. Enfim, a gente se dá muito bem, a gente briga muito, mas nada diminui o carinho. Hoje, pra mim, ela não se chama Maysa. Chama-se Ma. E eu passei a ser DG.



EU – Ma, me conta da tua infância, da tua babá, da tua mãe, do teu pai, das coisas que te marcaram. Da tua casa.

ELA – A minha infância foi uma árvore, um mar que servia de quintal de minha casa, foi um amor muito grande e de muita certeza, coragem. Foi boa demais para o que estava por vir. E veio, e como... minha babá, que continua comigo até hoje, continua com aquele cheirinho de alfazema no cangote onde muitas vezes eu me agarrava de medo da noite e do escuro. Mamãe, aquela mulher intocável, linda. A minha deusa. Papi, aquele ser quase proibido, sempre longe por causa do seu trabalho, forte como uma árvore, doce como um beijo que me dava no travesseiro quando estava no colégio interno, vivendo a imagem dele e de mamãe, naquela carícia medrosa e sozinha. Tudo me marcou na minha infância, porque eu sabia que ela ia terminar rápido.

- Ma, me conta do teu colégio (se você era boa aluna ou se tinha boas amigas).

- Meu colégio não era ruim. Eu é que era ruim no colégio, não por falta de disciplina, mas por saber que estando interna eu estava perdendo a juventude de meus pais.

 - Esse problema do seu pai e da sua mãe te marcou muito. Você é triste por causa disso?

- Triste, eu acho; mais que triste, só.

- Você tinha muitas amigas?

- Nunca pude ter amigas. Nunca me entendi muito com mulheres.

- Por que você diz sempre que sua mãe era uma deusa para você. Por que sempre era, no passado?

- Ela ainda é. Só que agora ela é minha também. Antes era só do papai.

- E André, teu primeiro marido, ele era super-mais-velho que você. E você uma garotinha. Você achava isso legal?

- No princípio, André era a figura do pai. Depois, mudou e eu passei a ser a mãe dele. Então, eu cansei. E descansei...

- Me conta um troço, Ma. Sempre achei o suicídio um ato de extrema coragem. Quando você tentava se suicidar, você realmente queria acabar com tudo ou o que você queria, no fundo, era começar outra coisa diferente?

- Os meus suicídios sempre foram pra valer. Geralmente, eu só faço as coisas pra valer. Depois, foi que eu descobri que aquilo era uma enorme procura de amor, de chamar atenção sobre mim. É, é um ato de coragem. Mas é a coragem mais inútil que eu já vi.

- Sabia que você ia dizer isso. Você já tentou a análise?

- Eu já me meti em análise, sim.

- Você teve coragem mesmo de se conhecer?

- Eu acho que sim, que teria coragem de me conhecer, não sei por quê, não? Mas prefiro conhecer os outros, gastar meu tempo conhecendo os outros. É mais importante para mim, é claro.

- Falou e disse...

- Ma, por que você bebe? Se eu sei que você tem horror ao gosto da bebida?

- Por que é que eu bebo, DG? Pela mesma razão que você. Realmente, eu não gosto do gosto da bebida. Mas tem o efeito depois. Às vezes, é bom. Às vezes, não, como você sabe tão bem.

- Mas eu gosto do gosto. Me responde agora. Eu sei que você adora a Elis Regina. E sofre à beça essa distância. Por que você não tenta se aproximar dela?

- Djenane, você às vezes julga os outros por si mesma. Nós temos, eu e você, alguma coisa em comum, mas nesse ponto não. Quem adora a moça é você. Eu, não. Quanto a sofrer a distância, como é que a gente sofre a distância se nunca houve presença? Você é que está sofrendo, porque ruiu a historiazinha que você fabricou, querida.

- Você muda muito de opinião, Dona Maysa. E que historiazinha é essa? Como eu gosto muito de você e gosto também dela, queria que vocês fossem amigas, só isso. Vamos mudar de assunto. Quais são as coisas que mais te emocionam num ser humano?

- As coisas que mais me emocionam num ser humano, é? A capacidade de amor, de humanidade que possa caber dentro de uma pessoa. Mesmo que sejam pequeninas. De tamanho, estou dizendo?

- Eu não sei se a senhora está me espinafrando ou se está me elogiando. Como eu sou uma moça muito educada, pelo sim pelo não, obrigada pela parte que me toca. O que é que você primeiro olha numa pessoa?

- Nos olhos. Pra mim, as pessoas estão dentro dos seus olhos.

- O que é que você não gosta numa pessoa? Aquilo que você não admite?

- Apunhada pelas costas, a mentira gratuita, as pessoas falsas, mesquinhas. São odiosas.

- Você acredita nas pessoas? Porque a impressão que você me dá é de que você só acredita em você mesma. Ponto final.

- Você vê. Se eu não tivesse acreditado em você, eu poderia ter ido dormir sem essa afirmação idiota sua. Se eu só acreditasse em mim, DG, eu já estaria morta, morta mesmo.

- Calma. Era só uma impressão minha, poxa. Guarda a faca afiada e o revólver e vamos mudar o assunto de novo.

- O que é que você queria, agora?

- No presente momento, gostaria de já ter estreado no teatro. Amanhã ou mesmo daqui a pouco, eu não sei...

- Do que é que você gosta?

- De tanta coisa. De Leila, por exemplo (Leila é uma criatura divina que a gente conhece. Uma pessoa tão boa, tão desarmada, dessas que não existem mais).

- Do que é que você tem medo?

- Eu não tenho medo de nada. Só de gente burra.

- Você não tem medo da solidão?

- Eu odeio a solidão quando não posso estar só. Eu amo a solidão quando preciso dela.

- Eu sei que você tem sempre uma musiquinha que você curte à beça. Foi o Midnight Cowboy, depois outras, e agora, qual é?

- Agora é o Tema de Simone. Modesto, né?

- Ultimamente, você já esteve tão feliz a ponto de querer que o tempo parasse?

- Faz tempo que não. E não sei até onde o tempo devesse parar. As coisas se tornariam muito iguais, portanto muito chatas.

- Qual é a hora do dia mais chata para você?

- A hora em que vejo um cachorrinho ou um animalzinho qualquer com fossa, só, sem possibilidades de poder falar. Nada há mais triste, seja a hora em que for!

- Que lindo e que triste, poxa. Vamos brincar um pouco agora, Ma. Eu digo uma palavra e você associa a outra. Tem que ser a primeira que vier à cabeça, senão não vale. Quero ver como anda a sua cuquinha (não perco essa mania de psicóloga).

Djenane – Saudade.

Maysa – Filme.

D – Felicidade.

M – Mar.

D – Amizade.

M – DG.

D – Homem.

M – Pai.

D – Mulher.

M – Eu.

D – Avião.

M – Desejo.

D – Miguel.

M – Paz.

D – Violência.

M – Amor.

D – Telefone.

M – Chato.

D – Eu.

M – Eu.

D – Árvore.

M – Teatro.

D – Sexo.

M – Paz.

D – Fim.

M – Começo.




Ary Fontoura, Maysa, Tônia Carrero, Marília Pêra e Djenane Machado em festa oferecida ao elenco da novela O Cafona na casa do produtor Carlos Machado, 29/04/1971. Foto: Ronald Fonseca. O Globo. 


6 de junho de 2023

Playlist do Blog oficial Maysa no Spotify

 


Em comemoração ao que seria o 87º aniversário de Maysa, o Blog elaborou especialmente uma playlist no Spotify com mais de duas horas de duração contendo o melhor de Maysa, já que a playlist criada pelo Spotify This is Maysa é falha, contendo músicas que são de uma outra cantora homônima. Viva Maysa!


11 de abril de 2023

Entrevista de Maysa à Rádio Jornal do Brasil, 1973


 Entrevista de Maysa à Rádio Jornal do Brasil 



Há cinquenta anos, em março de 1973, Maysa concedeu uma entrevista ao jornalista Simon Khoury da Rádio Jornal do Brasil, onde, sem papas na língua e bastante ferina, comenta o fracasso de sua segunda temporada no Canecão, em 1970, o porquê dela ter detestado gravar uma versão em português de "Love Story", critica Vinícius de Moraes e outros nomes da MPB, relembra episódios de sua carreira e canta à capela o "Tema de Simone", sua música favorita dentre as que compôs. Imperdível. Ouçam Maysa!



4 de outubro de 2022

Maysa: "É tão difícil caminhar" - Ele Ela, 07/1975


Maysa: “É tão difícil caminhar”


Entrevista a Clóvis Levi


“Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...”

Em 1969 você afirmou: “Sei que estou me desorganizando para me organizar de novo.” Em 1975, seis anos depois, como vai essa sua organização?

- Essa declaração foi feita quando voltei ao Brasil, medrosa, assustadíssima, querendo fazer uma porção de coisas diferentes, como a preocupação de limpar aquela imagem da mulher bêbada, da mulher gorda. Hoje estou procurando ficar em paz, tranquila, estou me deixando encontrar.

Porque você disse que a Maysa cantora não tem relação alguma com a Maysa ser humano?

- Porque nunca consegui ser a pessoa. Eu achava que só viam, em mim, a cantora com aquela imagem negativa, e nunca o ser humano. Havia, então, uma grande carência e um profundo desencontro dentro de mim: eu nunca sabia se estava sendo recebida como uma cantora ou como eu mesma. Eu mesma acabei sem saber quem eu era. E, quando uma pessoa se desconhece, ela não sabe nunca o que dar para os outros.

Porém a Maysa com quem conversei, parece estar cada vez mais apta ao ato de doar. Principalmente, porque começa a dar a si mesma, um justo valor.

- Hoje em dia já estou achando que “Maysa” é um negócio muito sério, é um negócio que impõe um respeito filho da mãe, que tem uma verdade... tem um peso muito importante. Estou começando a me achar uma pessoa muito bacana. Só está faltando me aproximar de mim mesma mais um pouquinho.

E o que é que você está fazendo para incentivar essa aproximação?

- Estou fazendo análise! (“Ela se ilumina, passa a falar com mais entusiasmo”). Faço análise de grupo e individual com uma das pessoas mais maravilhosas que já vi, ela é um sol, uma dimensão. (“Ela faz uma pequena pausa. Fica tensa.”) Mas, apesar disso, acordo sempre muito angustiada. É uma coisa muito estranha. Minhas mãos ficam muito frias e vem o desespero de não saber exatamente o que vai acontecer, um desespero de encontros, de desencontros, então, geralmente, eu me escondo, me meto numa cova e fico lá dentro. E fica difícil, para mim, tomar uma atitude que eu tenha programado. Sou incapaz de me programar, tenho medo de me programar.

Como é que você está se sentindo agora? Com disponibilidade para a entrevista? Ou angustiada, amargurada?

- Estou muito angustiada. Além do mais, hoje é segunda-feira, e segunda é sempre um dia de começar coisas, ainda é dia de voltar para o colégio interno.

Todo começo é angustiante?

- É. Angustiante, tumultuado, confuso. Eu não sei se estou agradando e meu medo é sempre esse: tenho um certo receio de ser demais.

Essa sua preocupação em agradar não será uma exagerada (e compreensível, num processo de análise) reação à a sua famosa agressividade?

- Acho que não, porque, no fundo, sempre tive essa preocupação. E eu acho que o que me fazia agressiva era a bebida. Era, talvez, para me defender de uma certa coisa que eu sabia que, de certa forma... fazia mal... ou melhor, pegava mal... fui criada dentro desses padrões que determinam que mulher não bebe. Então eu me defendia antes que me acusassem.


E hoje, depois de ter se submetido a um doloroso tratamento de desintoxicação, como é que você está com a bebida? (A resposta vem firme e imediata.)

- Muito bem. Totalmente em paz com ela.

Mas você bebe normalmente?

- Não. (Aí, então, Maysa vacila.”) Bebo... não... não posso. Não devo (A voz quase some). Mas faço de vez em quando. (“Assume a situação e a voz volta a ficar firme.”) Há momentos em que tenho uma terrível necessidade. Mas, agora, eu faço diferente. Fico dentro de casa. Antes eu ia para a rua... agredia meio mundo...

Mas você ainda se embriaga mesmo dentro de casa? Perde o controle?

- Não. Não. Não perco o controle (“Agora ela relaxa e sorri.”) ligo para o mundo inteiro. É aí que eu busco o relacionamento, é aí que eu tenho coragem de falar com as pessoas, de dizer o que sinto, de dizer que gosto delas... tenho uma profunda necessidade de dizer que amo as pessoas, mas só tenho coragem de fazer isso com a ajuda da bebida. Chamo aqui para casa as pessoas que eu amo, tentando juntar essas ilhas. As pessoas estão ficando cada vez mais sós, estão se separando cada vez mais, ficando cada vez mais ilhadas.

Mas você também ajuda esse processo, ilhando-se dentro desse apartamento...

- Ajudo. Ajudo muito. No momento em que eu quero essa aproximação...

Você mesma não acredita nela.

- Exatamente... e, aí, talvez, eu assuste as pessoas. Eu, geralmente, acabo destruindo as amizades, destruindo aquele amor que estou querendo dar. Geralmente, as pessoas não gostam de bêbados.

Você é uma bêbada muito chata? (Ela volta a ficar tensa.)

- Acho que sim. Muito chata. Tanto que já estou tão consciente disso que fico dentro de casa. (“Relaxa e ri.”) Fico só no telefone. (“Faz uma pausa. Fica séria.”) Bêbada, sou mais adulta, sabe? E sóbria, sou mais criança. Ficando bêbada eu assumo essa possibilidade de relacionamento que eu não devo ter tido, quando criança.

Depois de ter feito uma desintoxicação e continuando a beber você não está ameaçada de voltar a ser uma bêbada irremediável, sem controle?

- Sei que sou uma pessoa doente em relação à bebida, disso não tenho a menor dúvida. Sou uma pessoa que não pode se dar ao luxo de beber dois uísques só e parar. Então eu tenho de me moderar nisso. A desintoxicação foi uma coisa horrível, foram meses de grades, isso já tem seis, sete anos. mas os médicos me avisaram que eu iria passar por crises incríveis e que tudo seria muito difícil. Então, quando entro em crise, tento não beber. Eu procuro beber quando estou o mais relaxada possível.

Fale um pouco sobre os seis meses de grades (A resposta é definitiva.)

- Não!

É verdade que você ficou amarrada na cama? (Pelo rosto de Maysa passa uma sensação de terror.)

- Não! Não quero falar sobre isso.

Porquê? Isso ainda não está resolvido dentro de você? (Ela fala rápido, procurando cortar esse assunto.)

- Porque não interessa. (“Bem angustiada”) ... não me interessa... não me interessa... não é uma coisa sobre a qual interesse falar...

- Antigamente eu só chorava quando bebia. Atualmente, já consigo chorar sem beber e, que eu me lembre, é uma coisa de muito pouco tempo para cá. Sabe... é um negócio assim de você sentir... (“Maysa respira profundamente”) ... sei lá... agora mesmo, quando você me fez uma pergunta, já nem sei qual foi, a lágrima já estava saindo normalmente. E isso é uma coisa muito difícil de acontecer comigo.

Como vai o seu relacionamento com as pessoas?

- Está péssimo. Você pode chamar de pretensão, mas são poucas com quem eu gostaria de bater papo. Hoje, não tenho mais saco para aguentar determinadas pessoas (e determinadas entrevistas, inclusive, com gente que vem aqui me perguntar besteira). Parece que falta uma certa dimensão humana, sei lá... Tenho muita inveja das pessoas que falam nos “meus velhos amigos”, que se respeitam, que se veem. Com seus defeitos e qualidades, não importa.

Você não consegue manter seus amigos?

- Não. Eu perco. Perco porque fujo deles com medo de perdê-los. Fujo antes que isso aconteça.

Quantas pessoas você acha que são realmente suas amigas? (Há uma pausa, ela vacila um pouco.)

- Não sei... a Leila (“sua secretária”) é uma grande amiga que eu tenho, é uma mulher extraordinária... acho que todo o grupo que está fazendo análise comigo, não sei se são meus amigos por forças das circunstâncias, mas são meus amigos... acho que vou parando por aí... tem o Mister Eco, tenho um carinho enorme pelo Mister Eco (pausa.) Bom, tem o Aluísio de Oliveira, mas o Aluísio é diferente... é meu irmão, é outra coisa. Luisinho Eça... tenho paixão por Luisinho, é meu compadre... Gal Costa, por exemplo, é uma das coisas mais lindas que já vi na minha vida, coisa mais pura, mais doce, mais suave. O que essa menina tem dentro dela para dar, em nível de carinho, é uma coisa maravilhosa.

Mas você encontra esses amigos só uma vez na vida e outra na morte?

- Não. Gal e eu temos um relacionamento bastante bom. Mister Eco, por exemplo... a gente sempre se fala. Eu tenho uma saudade enorme dos meus amigos que já morreram: Antônio Maria, Stanislaw, Dolores. A gente era uma coisa, era um bloco – embora embalado no álcool – mas era um negócio para valer, a gente se via sempre, estava sempre junto, as pessoas se precisavam. Hoje todo mundo é muito sozinho, a solidão é grande demais.

Mas a solidão existe mesmo com o Carlos Alberto?

- O que eu gostaria de obter na vida, em termos sentimentais, seria a completa realização desde encontro com Carlos. Tem seus atritos, mas eu acho... tenho a impressão que vai bem...

Há quantos anos?

- Desde 72. Está se lixando... se polindo, as arestas estão sendo aparadas. Carlos é uma pessoa extraordinária, de uma pureza, de uma beleza... é um homem que vê transparente... eu gostaria que isso se firmasse, que fosse uma coisa que realmente prevalecesse. Estou cansada já de... de buscas... de desencontros. Estou realmente cansada, amargurada. Por enquanto esse relacionamento está meio difícil porque nós dois tivemos uma vida muito tumultuada. Então nós temos muitos, muitos, muitos machucados pelo corpo inteiro, então de vez em quando a gente se agride muito, às vezes até sem querer... então, dói profundamente, dói e há um medo que a gente volte a encontrar aquelas situações do passado, aquelas pessoas, aquelas coisas ruins da nossa vida. E a gente, então, se recolhe como uma ostra.

E por falar em se recolher, fale um pouco da crise que fez você se fechar como uma ostra por causa da gordura.


- Foi terrível. E não foi tanto no sentido da estética. Acho que aquela gordura toda era uma espécie de capa para me esconder, quase um invólucro. Eu tenho a impressão de que aquele negócio todo suava, me parecia uma coisa suja. Era uma imagem feia. Mas, ao mesmo tempo em que eu não cuidava do corpo, eu também me defendia: na televisão, só deixava que a câmera me pegasse do pescoço para cima. Trinta e seis quilos a mais...foi uma época realmente terrível. E a coisa ainda não está resolvida: hoje, se eu vou comprar roupa, vou direito para as cores escuras, para o preto, porque a coisa da gordura ainda está dentro de mim, eu não estou acostumada ainda.

Há alguma possibilidade de você voltar a engordar?

- Não. Inclusive, é horrível quando eu engordo um quilo minha cuca fica estourando, é um negócio de louco (Pausa. Sorri.) Agora, tem vezes que não dá, tem dias que preciso comer loucamente, é um processo de carência, sei lá. Como à beça e aí me vem o sentimento de culpa, eu engordo dois, três quilos, é um troço chato pra burro. Mas eu jamais voltarei a ser gorda. Não é só a gordura física, mas o que ela representava dentro de mim.

A gordura dificultou o teu relacionamento com as pessoas?

- Acho que sim. Pelo menos, durante o dia. Eu não me lembro de ter saído durante o dia, naquela época de gorda.

Mas eu não estou falando de você para as pessoas; e sim, das pessoas para você.

- É. Eu achava que as pessoas se sentiam agredidas. Eu tinha uma casa na Barra e, lá, recebia meus amigos, mesmo de maiô. Mas, naquela época, eu nunca colocaria um maiô aqui em Copacabana.

(Hoje Maysa é uma mulher magra. Porém seu rosto está um pouco marcado e há um ar de cansaço em torno dela. Mas, paradoxalmente, o que se nota é um renovar constante de esperanças, um incrível potencial de vida. Sua vontade seria a de fazer música, jornalismo, teatro, cinema, tevê. Gosta de tudo e é pena que haja tão pouco tempo. Todavia, com tantas coisas para fazer, ela se tranca em casa e nada produz. O potencial está emperrado. Ela é uma artista, hoje, com sua criatividade minada. Por que Maysa nunca mais conseguiu compor?)

Em 69 você declarou que não havia atmosfera para compor. Isso existe ainda hoje?

- Existe.

Atmosfera interna ou externa?

- Interna. A externa, inclusive, em que ela pode me afetar? Por eu não estar fazendo sambinha de breque? Por não estar atualizada com o momento? Eu não sei o que é estar atualizada com o momento, porque o que está dentro de você é o que vale, o momento é o meu e não o que está lá fora. Tenho escrito muita poesia, muita coisa..., mas eu não tenho coragem... não sei o que é... não estou conseguindo botar música...

Há quanto tempo você não compõe?

- Desde 71. O “Tema de Simone”, para a novela “O Cafona” foi a última coisa.

Mas não existe um motivo específico que impeça você de criar?

- Aí é que está: não sei. Tá embutido, tá lá dentro..., mas não sei o que é....

(Maysa, uma mulher sempre à procura de respostas. Maysa, uma mulher de 39 anos que não dorme de perna esticada com medo que lhe puxem o pé (“É um trauma do colégio interno, a pior coisa que aconteceu na minha vida”). Maysa, uma mulher adulta que se sente – no mundo – como a Maysa-criança: sempre procurando agradar as freiras do internato. Para não ser nunca castigada. Para não ficar sozinha no quarto escuro. Maysa, cujo nome está tão ligado – muitas vezes levianamente – à palavra suicídio.)

Afinal, você tentou o suicídio quantas vezes?

- Várias.

E sem estar bêbada?

- Algumas vezes.

Mas é evidente que uma pessoa que vive tentando se suicidar não está mesmo a fim de morrer.

- Também acho. Eu sei que não quero morrer. Mas acontece que isso tudo é uma espécie de apelo, um pedido de proteção. A gente, de repente, se vê só, se sente rejeitada. E a gente sabe que uma tentativa de suicídio, traz, de novo, para perto de nós, as pessoas de quem a gente gosta.

E é importante, neste momento, lembrar a fase inicial da entrevista. Pois é com ela que a entrevista acaba:

- Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...


(Reportagem publicada originalmente na revista Ele Ela de julho de 1975.)


Agradecimento: Maysa Oficial


7 de julho de 2022

Escrava de sua alma - entrevista na Argentina, 1971


“Escrava de sua alma”





 Durante várias horas, se manteve entre Maysa e SEMANA, um diálogo intenso em que a grande cantora brasileira desnudou sua alma e convocou seus demônios. O que surpreendeu neste diálogo com o jornalista foram as incríveis revelações e ela, por sua vez, foi surpreendida com uma anedota doce e terrível.
- “Não só o sonho da tumba da terra se repete há muito tempo. Também sonho que vôo. Eu nasci para voar... Para ser livre. Sempre sonho que vôo... Ou que estou na tumba”. 

 - Sobre drogas: “Provei as drogas, logicamente. Eu gosto de provar tudo. Mas não gostei delas. Gosto é do efeito da bebida, embora não goste do seu gosto”. 

 - Sobre análise: “O que se passa lá, não me interessa. Se perde muito tempo. E eu não tenho tanto tempo para perder – ou para ganhar. O melhor tratamento é estar ao lado de gente que me interessa, e fazer o que tenho vontade”. 

 - Sobre Deus: “Creio no verde, vejo um Deus maior, e não aquele que me foi ensinado no catolicismo”. 

 - Sobre a infância e a primeira juventude: Afastada pelos pais, como interna, em um colégio de freiras: “Saí de lá um pássaro ferido com a pata atada a uma correntinha lançando a liberdade ilusória do céu que, de pronto, se converte outra vez na caixa negra e, asfixiante de um matrimônio com um homem obtuso, um verdadeiro quadrado. Tinha dezessete anos e meio e pensei que iria abandonar a janelinha quadrada do colégio, e cair em uma gaiola. Desde então, não podia dormir e comecei a tomar comprimidos”. 

 Mas, foi neste colégio que lhe condicionaram o inconsciente para a pulcritude moral, as exigências ascéticas, a escravidão às normas estritas a cerca de sexo e a vida “ordenada”, porta estreita por onde teve que passar empurrada também pelos pais e pelo marido, um homem muito mais velho do que ela. Quando resolve romper com seu primeiro marido e se deixa levar mais livremente pelos sentimentos amorosos (leia-se sexuais) além do gosto crescente pelo álcool, concessões todas que dá a si mesma, desde sua consciência ansiosa de liberdade, começa o terrível e destruidor conflito. Seu inconsciente segue clamando pela “velha ordem”, o ascetismo, a sujeição sexual a uma pessoa com a qual está “casada perante à lei”, mas sua razão, empurrada por seus desejos, a coloca no meio da liberdade mais absoluta e faz com que ela, desde o fundo de sua alma escravizada à família (“adoro os meus pais”) e a religião (“creio em um Ser superior”), passe a se considerar uma LIBERTINA.

 - Sobre Miguel: “Um amigo excepcional, por que... Marido somente, é muito pesado!”

 - Sobre suicídio: “Sempre tenho a sensação de que me vigiam, de que não aceitam minha forma de viver. Então, isso me violenta e busco a solução mais fácil. Eu busco, desesperadamente, amizade; em vez de amizades encontro sempre acusações. Sempre não, aqui em Buenos Aires, não. Aqui me sinto bem... Amo essa cidade, onde, além disso, debutei como cantora. Aqui tenho verdadeiros amigos. Aliás, no Rio, retorno ao meu cárcere do hotel, com as montanhas por trás e o mar pela frente. Aqui, por fim, me sinto livre outra vez.” 

 - Sobre show em Mar del Plata: “Tenho medo do frio. Eu gosto do calor, deve ser por isso que sigo vivendo, de algum modo, no Rio. O calor... tomar banho de sol. Algum dia vou para uma ilha sozinha e ver se me encontro comigo mesma.” “Se tivesse que deixar alguma das duas coisas que faço o jornalismo e o canto, deixaria o canto, porque me machuca toda essa maquinaria do comércio que se faz com os discos, toda essa gente que não me interessa para nada e que me obriga à concessões permanentes desde o início da minha carreira.”





(Entrevista concedida ao jornal argentino SEMANA na ocasião da última turnê de Maysa em Buenos Aires, em 1971).

16 de fevereiro de 2021

Maysa e Maria Bethânia

 

Quando Maysa encontrou Maria Bethânia


Maysa em São Paulo. 
Foto: Diário da Noite, 18 de se setembro de 1968


Maysa foi descoberta na plateia do teatro Ruth Escobar, no último sábado, quando assistia a estreia de Maria Bethânia. Chegou há dois dias de Madri. [...] Embora tenha procurado entrar no Teatro Ruth Escobar, Sala Gil Vicente, bem antes de começar o espetáculo 'Comigo me desavim', não conseguiu manter-se incógnita até o final da apresentação. Como Maria Bethânia vem à plateia durante o espetáculo, dialogar com o público, localizou Maysa sentada ao canto ao lado lateral direito do teatro. No mesmo instante Bethânia subiu ao palco e anunciou que dedicava seu espetáculo a Maysa, presente à plateia. A grande surpresa aconteceu: o público todo em pé aplaudiu Maysa durante vários minutos. Foi tão grande a receptividade que a cantora, [...] ficou comovida com a reação. [...] Mas como afirmou a própria Bethânia, é a grande cantora que, pelo seu estilo e pelo repertório que escolheu, já figura na história da música popular brasileira."

Diário da Noite - São Paulo - 16 de setembro de 1968





Foto: revista Veja, 1968


Na ocasião em que entrevistou Maria Bethânia para o programa Dia D, da TV Record de São Paulo, em sua estreia como repórter, Maysa logo confessou a Bethânia: "Sabe, me pediram uma entrevista muito agressiva com você. Parece que está na moda as pessoas se agredirem."



Foto: revista Intervalo, 1970




Maysa durante apresentação em 1970




3 de setembro de 2019

Maysa, Malé, moda, mulher - Correio da Manhã, 1972



Maysa, Malé, moda, mulher

     Ouça. Maysa voltou. Voltou não, porque ela nunca saiu. Um dia chegou à procura de amor. Encontrou. Depois largou tudo pela sua arte. E aconteceu. Marcou época na música popular brasileira pela sua suas canções de curtição e dor de cotovelo. Agora procura mais a vida, através das gentes que ela reúne no seu ponto de encontro: a Malé.
     Lojinha nova e bem diferente. Tudo lá é usado. O mais interessante é que você pode trocar as coisas guardadas no baú e levar pra Maysa que ela dá um jeito, isso é uma característica da casa.
     Em termos de moda, a malé não segue. É anti moda mesmo. Tem de tudo. Desde roupas louquíssimas até as super bem comportadas; discos fora de circulação; livros esgotados, mais cadeiras e chapéus. Por exemplo: ninguém sabe como, mas a verdade é que ele está lá, um casaco da guarda real da Inglaterra. Assim como o chapéu de astracã preto que Maysa usou no seu último show. Uma bolsa estranhíssima, toda de pelo de cabrito.
     Para Maysa, a butique foi ótima, “pois dá chance de bater-papo, sem alinhavos, com gente amiga.” A Malé fica na Rua Djalma Urich, 91/409.


 Correio da manhã – Rio, domingo 18, e 2ªfeira 19/06/1972



Fotos de Adalberto: