O que? Qualquer coisa.
Sobre a envelhecida – mas não esquecida – figura da mulher
infeliz, a cantora Maysa vem desenhando nos últimos três meses o perfil ainda
indefinido da pessoa famosa que se decide a correr o risco de mudar de
atividade e sofrer críticas como qualquer principiante. Entrevistadora,
apresentadora e repórter do DIA D (Record de São Paulo), ela tem mostrado
inteligência, presença de espírito e, ao contrário da maioria dos
apresentadores de TV, cultura. Mas não tem evitado os erros que todo
principiante comete. O mais recente deles foi uma confusa entrevista nos EUA
com o advogado do fanático Charles Manson, acusado de em agosto do ano passado
ter comandado o assassinato da atriz Sharon Tate. Esse erro, seus novos planos
e seu passado foram alguns assuntos de que falou na entrevista com Armando
Salem, editor de “Televisão” de VEJA:
VEJA – Diga alguma coisa.
MAYSA –
Ahn? Bemm... Eu posso dizer o que você quiser. Mas você não tem uma
pergunta específica?
VEJA – Qualquer coisa.
MAYSA – Bom, tá perfeito, mas eu preferia que você dissesse
sobre o que. Você é jornalista há muito tempo? Digo, faz tempo que você é
repórter de VEJA? Você é repórter de VEJA?
VEJA – Sim, sou repórter de VEJA, faz tempo que sou jornalista
e entendo sua preocupação. Não sou um foca*. Agora, não entendo seu espanto com
minha pergunta. Afinal de contas, foi uma pergunta exatamente do gênero da que
você fez ao advogado de Charles Manson no Hall of Justice, de Los Angeles. E
com a mesma insistência.
MAYSA – (silêncio perplexo)
VEJA – Você deve assistir aos vídeos tape de seus programas
e se tiver o mínimo de senso crítico...
MAYSA – Sim, vi o tape no Rio de Janeiro logo que cheguei de
viagem e tive vontade de morrer. Se pudesse desligar o botão da minha televisão
e tirar o programa do ar, teria tirado. Infelizmente, a gente não viaja por
conta própria, mas com o dinheiro dos outros. E o programa que dá IBOPE, não
importa se bom ou ruim, eles levam ao ar. A TV brasileira não existe para ser muito
inteligente.
VEJA – Nesse caso a coisa muda de figura, não conhecia você
pessoalmente e pela TV você parecia ser uma mulher orgulhosa e pretensiosa
que...
MAYSA – Eu, orgulhosa? Porque?
VEJA – Talvez pelo seu porte, pelo ar teatral da pose sempre
estudada...
MAYSA – Mas eu não sou estudada. Sou autêntica. Procuro
sempre agir com naturalidade, a não ser...
VEJA – Não vem ao caso. Isso fica para mais tarde. O negócio
é discutir sua entrevista com o advogado de Manson. Você conseguiu com
exclusividade a cobertura do julgamento. Teve o advogado à sua disposição, o
auxiliar do xerife, uma amiga de Manson e não fez nada. Deixou todo mundo sem
saber nem mesmo se Manson estava na sala do tribunal. E, o que é pior, depois
de um raio de luz, da insistência do advogado em que você fizesse uma pergunta
específica, perguntou se ele achava Manson culpado.
MAYSA – Não sei o que aconteceu. Sabe quando você sonha que
está fazendo algum troço, e quando está ali, com tudo à sua disposição, vem
alguma coisa e lhe tolhe todos os movimentos? Minha voz não saía. Eu não
conseguia coordenar nenhum pensamento. Sei lá, estava abobada. Se eu tivesse me
preparado, teria feito uma coisa melhor, mas fui avisada às 10 horas da noite,
pelo auxiliar do xerife, de que poderia ir ao Hall of Justice, inclusive com a
câmera de filmagem.
VEJA – Sabe o que é uma pauta?
MAYSA – Sei, é aquele resumo da história que a gente faz...
VEJA – Não. Esse resumo também é importante e você não
fez...
MAYSA – Não vai querer que eu lhe mostre que conheço o caso
Manson?
VEJA – Claro que não. Mas no programa você devia ter
lembrado o caso. No entanto, partiu do pressuposto de que todos os seus
telespectadores eram gente que acompanha as notícias através de jornais ou
revistas...
MAYSA – Meu público é o público de “Ouça”, ou seja, de todas
as classes.
VEJA – Mas voltemos à pauta. Pauta é exatamente este roteiro
que eu trouxe para me orientar e não esquecer certos temas da entrevista que
estamos tentando fazer. Coisa que pouquíssima gente parece conhecer em nossas
televisões.
MAYSA – Concordo plenamente, tudo é improviso. Mesmo nas
entrevistas cara a cara que eu faço no “Dia D”, muitas vezes, fico sabendo
cinco minutos antes de entrar em cena, ou do encontro com o entrevistado, de
quem e do que se trata. Não é que eu queira me desculpar, mas o resultado só
pode ser o apresentado – às vezes; bom, outras, ruim. Mas acho importante o que
está dizendo...
VEJA – O que?
MAYSA – Todas essas críticas. Ainda no domingo passado, a
respeito do programa do Charles Manson, li em um jornal de São Paulo que o
programa havia sido excelente, com mínimas falhas. Agora veja quanto foi
ridículo. Para mim isso é que é o importante, sei que não sou uma repórter...
VEJA – Era minha próxima pergunta. Olhe aqui na pauta.
MAYSA – (Sorri.) Eh, facilita. Mas, dizia, não sou repórter.
Vejo no jornalismo algo de fascinante e pretendo me dedicar a ele. Manson era a
minha primeira grande experiência, falhei, não pretendo me desculpar. Mas não
gosto das coisas pela metade, como fazia antigamente. Ninguém nasceu sabendo,
vou aprender a ser jornalista, aproveitar o meu “background” – intuição. Tudo
em mim é intuição.
VEJA – Desculpe. Mas você parece ser uma mulher culta. Não
apenas impressiona por falar fácil, mas suas histórias demonstram uma mulher
vivida.
MAYSA – Minhas histórias. Histórias do tempo em que eu bebia
demais para ter um pouco de coragem...
VEJA – É tímida?
MAYSA – Ultra tímida. Naquele tempo eu cultivava minha
infelicidade. Os jornais falavam que eu era uma bêbada, infeliz, e eu delirava
com isso. Ficava feliz porque alguém me incentivava a ser infeliz. Na verdade,
eu não era nada, não via nada. Terminei o ginásio e aos dezoito anos de idade
estava casada. Jamais gostei muito de ler (li muito pouco). Morei na Espanha,
vivi uns meses completamente dura em Paris (mas dura mesmo, não tinha dinheiro
nem para comer), morei em alguns países da América Latina e, francamente, não
tirei nada além do dia a dia. Claro, aprendi a falar inglês, francês, espanhol
e italiano.
VEJA – Bom, vivida ou não, o certo é que você carrega uma
boa bagagem. E o simples fato de falar várias línguas já dá para você se
comparar com os demais entrevistadores de nossas TVs.
MAYSA – Pra começar, eu quase não vejo televisão e conheço
muito pouca gente para me comparar...
VEJA – Você não gosta de televisão?
MAYSA – Para responder isso, tenho que cair no velho chavão:
“É masoquismo ver televisão no Brasil”. Mas a verdade é que eu não aguento TV.
Ela atrapalha o diálogo e eu adoro conversar. Prefiro bater um papo sozinha, feito
uma louca, ou ir cozinhar, a assistir televisão. Além disso, pouquíssimos são
os bons programas.
VEJA – O “Dia D” é um bom programa?
MAYSA – Vai ser um bom programa. Já tem muita coisa boa, mas
é muito longo e tem uma série de enxertos (musicais, na maioria) que se repetem
para encher suas três horas e meia de duração. Agora ele vai passar para uma
hora e vinte e será mais de jornalismo do que musical. E existe uma preocupação
tanto de minha parte como do Paulinho Machado de Carvalho (diretor da Record)
em não assinarmos contrato. Assim, no dia em que um dos dois não estiver
satisfeito faço as malas e me mando. Por enquanto estamos de acordo. E
animados. Ele com o meu trabalho, eu com as perspectivas de poder fazer um bom
jornalismo. Entrevistas humanas, que outros fariam mundo-cão. O velho professor
de violino da porta do Municipal do Rio, que, enquanto a orquestra toca no
interior do teatro, toca na porta, na rua, feliz, exibindo um cartaz de sua
profissão, em busca de alunos. Quero chegar à essência desse ser, dessa vida.
VEJA – Mas você me parece tão epidérmica!
MAYSA – Sim, sou epidérmica. Para mim, tudo é pele. Emoção,
o que me cerca. E o que sempre procuro traduzir nos meus programas é isso, o
que estou sentindo. Por isso não aceito a imagem de teatral que você me fez na
TV. Eu sou aquilo. Por isso tenho fé no filme que só eu e o cinegrafista que me
acompanha em minhas entrevistas (Laerte Garcia Rosa) iremos fazer. Sem roteiro.
Ele filmará um longa metragem onde eu procurarei viver todas as emoções do
momento e tentar transmiti-las. E para tentar transmitir isso vou até o
impossível. Não tenho medo de bebidas, tóxicos. Só do LSD. Mas, se for...
* foca é o apelido que se dá nas redações ao jornalista
principiante.
(Entrevista publicada originalmente na revista VEJA, em 9 de setembro de 1970)