Maysa, a volta ao lar
Reportagem de Creston Portilho · Foto de Wallace Calainho
Quem a vê falar e gesticular sente-se em companhia de outra
mulher. Maysa, a dos olhos de gata, que era gorda demais, complicada demais,
esta morreu. Os olhos continuam os mesmos, mas a figura mudou tanto quanto a
pessoa: está magra e sorridente, sem os gestos nervosos e angustiados do tempo
em que cantava Ouça. No apartamento
de Copacabana, ao lado do marido espanhol e de recordações do meio mundo que
andou percorrendo, ela informa que, finalmente voltou.
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Voltei mesmo. Tudo aconteceu de repente. Agora que estou aqui
só preciso de um repertório novo, porque o meu é absolutamente antigo, o que se
pede pelo exterior.
Maysa tem as suas queixas, que desfila sem amargura. Por
exemplo: não a mencionam nos textos sobre a bossa nova – “logo eu, que fui quem
primeiro levou a bossa nova lá para fora” – e nem a procuraram para novos
contratos enquanto morou na Europa – “não sei porque: o público nunca vendeu,
sempre que passava aqui pelo Brasil era aplaudida nos espetáculos a que
comparecia como espectadora”. De qualquer maneira, a mulher jovem que desprezou
um sobrenome famoso para construir o seu cartaz só com o prenome, mantém a
mesma sinceridade que lhe valeu a fama de atrevida.
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Minha voz tem alguma amargura. Talvez porque na canção eu
procure uma válvula de escape. Ou talvez porque a canção me ajuda a botar para
fora tudo que tenho aqui dentro. A expressão botar para fora é muito feia. Posso substitui-la por outra melhor:
vomitar. Vomitar todas as coisas que estão dentro de mim e que saem pelos
olhos, pelos dedos e pela boca. É um modo de comunicar, sabe? Por exemplo,
tenho muito medo do público, mas canto tão bem numa boate como quando o faço
sozinha. Eu gosto de cantar, dá-me prazer.
Por onde andava Maysa? Há pouco tempo atrás, ela andava pelo
elegante bairro de Salamanca, em Madri, onde vivia com o advogado e industrial
Miguel Azanza, seu marido, e o filho, Jaime. Ai já era uma mulher diferente.
Seu vestido curto chamava atenção. Estava magra, bonita, ria mais facilmente.
Apenas, fumava demais – “Dizem que o fumo faz perder a memória. Por isso fumo,
tentando esquecer certas coisas.” Seus jantares íntimos eram famosos, reunindo
desde atores e toureiros a membros da realeza espanhola. Isto durante cinco
anos. Antes, passou pelos Estados Unidos, por toda a América do Sul e Central,
pelo Japão e pela Europa – Portugal e França. Foi a segunda brasileira – depois
de Marlene – a cantar no Olympia de Paris. Cantou no Blue Angel de Nova Iorque
e gravou durante dois anos para a CBS. Depois, em Portugal, conheceu Miguel
Azanza, casou-se com ele e foi morar em Madri. Em 1963, já casada, gravou dois
discos na Itália, inclusive o Barquinho.
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Este resumo pode parecer que me sinto profissionalmente
realizada – diz Maysa. Não há nada disso. Talvez porque ainda seja muito
jovem... mas sentimentalmente, sou. Vivo bem com meu marido. Temos nossas
brigas, como todas as pessoas de inteligência normal, mas é só.
Agora, de calças compridas e blusa verde, não há nada que
faça lembrar aquela mulher atormentada, que uma vez recorreu à sonoterapia para
afastar problemas.
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Quando dizem que eu sou a voz do amor, não sei o que querem
dizer. Procuro o amor que sinto, que canto. Nem uma palavra, nem um gesto
deixam de ter significado para mim, e nunca foi de outra maneira. Dizem também
que eu me exprimo melhor nas canções tristes. Talvez tenham razão. São as que
mais chegam a mim. Eu acho que sou triste e não vejo porque havia de ser
alegre. Foi sempre assim desde os onze anos, quando eu compunha umas
bobagenzinhas. Aliás, não consigo me lembrar muito bem da minha juventude, dos
tempos que passaram entre os doze anos e até a bem pouco. Mas me lembro bem dos
detalhes de quando tinha três ou quatro anos. – dos móveis da minha casa, do
telefone e de todas as coisas pequenas que eu conservo bem vivas. Por isso
imagino que minha infância deve ter sido agradável. Talvez, só a infância.
Agora luto para me encontrar. Toda mulher que tem uma certa vivência luta
sempre por alguma coisa. Quer sempre mais e quando digo que luto para me
encontrar, não quero dizer encontrar-me sempre. Isso seria aborrecido. Gostaria
apenas de poder dizer, um dia: sou assim. Mas não sei como sou.
Quase ninguém se lembra de que o primeiro disco de Maysa foi
gravado em benefício de casas de caridade – era essa a condição imposta pelo
seu marido, André Matarazzo. Todos se recordam, no entanto, dos sucessos que
começaram a se acumular quando ela se apaixonou pela nova carreira, tornando-se
apenas Maysa: Ouça, Meu Mundo Caiu, Se Todos Fossem Iguais a Você, Recado.
A última vez que lançou música nova foi no I Festival Internacional da Canção, Dia das Rosas, muito mais aplaudida pelo
público do que a primeira colocada. É por tudo isso que Maysa tem confiança
nesta sua volta, que se faz um tanto cautelosamente; primeiro ela integrará um
júri de televisão, em programa normal; depois chegará a vez de voltar à luz dos
holofotes.
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Olha, a bossa nova, que é o meu gênero, não é o gênero de
música que apreciam no Brasil de agora – diz ela. No momento, o pessoal gosta
muito de iê-iê. Minha maior alegria no exterior foi ver os estrangeiros apreciando
tudo aquilo que o nosso grande público
não aprecia.
Dos compositores atuais, gosta muito de Chico Buarque –
pretende gravar alguma coisa dele –, gosta de várias coisas, como Eu e a Brisa, de Johnny Alf, mas
gostaria muito mais de voltar a compor.
Tenho trabalhado tanto, conhecido tanta gente, que me
falta tempo para compor. Só tenho feito poesia. Talvez, algum dia, junte todas
e publique. Dá um livro.
(Reportagem publicada originalmente na REVISTA MANCHETE, em 1969)