Por: Vitor Dirami
Maysa em cena: Woyzeck
Maysa interpretava a camponesa Maria no espetáculo de Georg Büchner.
Na noite do dia 8 de outubro de 1971, Maysa nascia para o mundo do teatro, por pouco tempo. Sua passagem não seria longa. Naquele espetáculo de nome Woyzeck, obra do alemão Georg Büchner datada da primeira metade do século XIX, Maysa interpretava uma das protagonistas – Maria – esposa do protagonista Franz Woyzeck – um infeliz soldado alemão, atormentado pela pobreza e pela loucura, vivido pelo ator Antônio Pedro.
A obra já era em si perturbadora, devido à morte do autor em 1837, com apenas 23 anos de idade, a obra permaneceu inacabada e após sua morte foram sendo enxertados novos fragmentos em versões mais atualizadas. Carregada de conotações sociais, com temas fortes e ao mesmo tempo tabus para a época como a marginalidade e o proletariado, Woyzeck mistura elementos inéditos e reflexivos que só viriam a aparecer na dramaturgia mundial, mais de um século depois, durante as vanguardas literárias do século XX. É necessário o mínimo de estômago e preparação psicológica para digerir uma obra tão atormentada, embrulhante e ao mesmo tempo assustadoramente atual.
Avessa a todo esse temor perante Woyzeck, era esta mesma complexidade que desafiava e seduzia Maysa. Ela chegou a ignorar o histórico fracassado da obra – mais de vinte anos antes, o diretor Ziembinski fizera a adaptação para o texto original, rebatizando a montagem de Lua de sangue. O resultado fora catastrófico: nove dias após a estréia o espetáculo foi tirado de cartaz, a platéia minguou e ficou às moscas, a peça havia sido considerada arrojada demais para a época. Maysa ignorou o fato e decidiu monta-lo custeando uma produção milionária do próprio bolso, ressuscitou a antiga produtora independente (Guelmay) e investiu todas suas reservas monetárias em Woyzeck. Até a armação dos cenários era feita em madeira de lei – importou equipamentos, encomendou figurinos, alugou o Teatro Casa Grande por quase seis meses, contratou vinte atores, músicos, um coro. Tudo com seu próprio dinheiro, Maysa parecia mais obstinada que nunca.
A produção era assinada por Miguel Azanza – o marido espanhol de Maysa, e a direção ficara a cargo de Marinilda Pedroso, mulher de Bráulio Pedroso, o autor de O Cafona. As músicas eram assinadas por Edu Lobo e Ruy Guerra, com regência de um maestro estreante: Guto Graça Melo. Os cenários e figurinos eram de autoria de Joel de Carvalho. Alguns outros nomes do elenco eram Antônio Pedro, Cláudio Mac Dowell e José de Freitas. Já prevendo mal-entendidos, Maysa advertiu os fãs de que aquele era um outro tipo de trabalho, bem diferente do que estava acostumada a fazer: “Meu público como cantora é aquele que bebe e curte uma fossa. Estou fugindo desse público, partindo para assumir uma coisa muito além de cantar. [...] Estou plenamente consciente desta expectativa. Sei que o teatro é muito sério. Não tenho o direito de fazer bobagem.” Em entrevista ao Caderno B do Jornal do Brasil ela afirmava que seu maior desafio era cantar dois em tons acima do normal – em mi.
Nas anotações de seu diário pouco antes da estréia, Maysa se revelava perdida em meio ao personagem: “Ontem passamos duas vezes a peça e, em ambas, especialmente da primeira vez, foi um caos. Todo mundo desligado, um lixo.” E se mostrava em dúvidas quanto à interpretação: “Amanhã, pretendo fazer um histórico sobre as situações e as emoções que devo buscar dentro de mim para faze-la mais dura, mais doce, mais autêntica. Maria ainda está meio perdido em mim.” A imprensa parecia igualmente perdida. Menos de uma semana antes da estréia ainda se noticiava que Maysa faria um novo show no Teatro Casa Grande. O título da peça foi grafado erroneamente com ao menos três variações: “Voivec”, “Voivez”, Zoizec”. Preocupada, a diretora Marinilda Pedroso convocou uma coletiva de imprensa e explicou de forma didática quem era Georg Büchner e qual o significado da peça Woyzeck. Sobre a atuação de Maysa, foi sincera: “Como atriz, Maysa tem que superar uma série de limitações. Sua atuação está sendo mais na raça do que na técnica. Em algumas cenas, ela precisa evoluir. Mas é uma mulher muito explosiva e se entrega muito. Além do mais, tem uma vivência que é fundamental para compor a personagem. Está crescendo a cada dia.”
Chamariz da montagem, no dia 8 de outubro, o Teatro Casa Grande recebeu um bom público para a estréia. Os aplausos porém, foram burocráticos. Talvez os fãs ainda esperassem um show musical, com números e quem sabe Maysa de pernas de fora (porque não?). Não foi o que encontraram (definitivamente). A cada nova apresentação a platéia evaporava, a crítica foi ácida e muito negativa – a imprensa julgou o Woyzeck de Maysa apenas pretensioso, a Tribuna da Imprensa o definia como “a delícia dos amadores”, a Revista Veja criticava a pretensão de Maysa em montar um espetáculo tão complexo como Woyzeck, e o reservava a profissionais.
A verdade é que Woyzeck era um grande passo em falso, uma peça superestruturada e de veras grandiosa, mas que não aconteceu, não evoluiu. Era um trabalho de difícil aceitação popular, com um raio de público muito pequeno, reservada a intelectuais e estudiosos. Foi um fracasso vergonhoso – em algumas noites havia mais gente em cima do palco do que na platéia. Para não amargar um prejuízo e um vexame ainda maior, Maysa decidiu retirar o espetáculo de cartaz e até uma futura temporada prevista para São Paulo foi abortada. Maysa teve de arcar um imenso prejuízo, com imensuráveis dívidas – foi o maior fracasso de toda sua vida. Ela acabou gastando todas suas reservas em uma montagem que não deu qualquer retorno financeiro à altura. A obstinação desmedida, e a crença em seus sonhos fizeram com que ela agisse de maneira imprudente sem medir as consequências dos seus atos.
Maysa poderia ser muito sincera, verdadeira. Mas jamais permitiria que a sombra do fracasso marcasse sua carreira. Em uma entrevista concedida pouco tempo após o dissabor, ela admite:
“Tudo não passou de uma experiência ridícula. Eu, como empresário e atriz fui a grande culpada. A crítica até que poupou minha pessoa. Eu não merecia ser poupada. Sou virgem em teatro, não li nada, vi muito pouco, não por falta de interesse, mas por força das circunstâncias. E aí quis partir, direto, de O Cafona para um autor como Büchner. Não dava pé. Fui pretensiosa e me estrepei, perdi todo o dinheiro que tinha.” Mas não demorou muito, já no ano seguinte ela estaria fazendo troça do episódio: “Acho que as pessoas até imaginaram que era o show de um travesti: a Maysa Woyzeck.”
As fotos de Maysa em cena dão noção da dramaticidade de Woyzeck.
Consulta bibliográfica:
"Maysa" - José Roberto Santos Neves
"Maysa - Só numa multidão de amores" - Lira Neto