13 de agosto de 2012

Imprensa: Maysa está chorando - O Cruzeiro (21/11/1973)


Maysa está chorando


No ar: Maysa chorou em colorido


Texto de Afrânio Brasil Soares · Fotos de Geraldo Viola

Num programa de televisão em que fazia parte do júri, Maysa chorou, quando interrogada por que abandonara o canto. Vivendo angústias existenciais, decretou seu recesso, privando seu enorme público de enternecesse com o calor de sua interpretação, o verde felino de seus olhos e a esplêndida seleção de seu repertório.

–       Por que não? – interroga Maysa, deixando no ar, no hermetismo da indagação, a explicação que ela julga claríssima, da razão de seu afastamento do público.
–       Comecei fazendo uma coisa e hoje tudo mudou.
Rebelde às fórmulas, às conceituações habituais, aos lugares-comuns com que os artistas costumam definir suas disposições psicológicas, Maysa embatuca em cada colocação dos problemas. Tem para cada situação sua maneira de ver e, sobretudo, de transmitir o seu estado de alma.
–       Eu sou – sintetiza, absolutamente alheia à interpretação que a mente comum tente tirar dessa definição de si mesma, buscando, seguramente, nessa economia de termos, expressar autenticamente o que julga suficiente transmitir de um mundo interior riquíssimo de achados, que suas mil vivências deram como resultado uma singularíssima personalidade.
–       Para mim o essencial é a satisfação íntima.
Essa satisfação íntima permanece, como o mais coerente eixo de uma personalidade inabalável, a razão de sua teimosia em aceitar o status quo. Trocado em miúdo, é ela mesma que tenta a explicação:
–       Meu caso é viver o meu canto e vender o meu tempo.
Os esquemas, as fórmulas publicitárias, as regras do jogo, a busca do sucesso fácil, a produção dirigida para o que está no momento ao gosto do público – antes de irritar sua sensibilidade de artista autêntica – provocam-lhe uma espécie de cansaço e enfado, algo que não se afina absolutamente com as suas cogitações.
Inútil tentar enquadrar Maysa no contexto dos artistas comuns, desses que andam por aí a falar de comunicação, a repetir os chavões nas entrevistas de imprensa, ciosos de agradar o maior número de ouvintes ou de leitores.
–       Me dou ao luxo de fazer poesia e música para mim mesma – salientando, logo a seguir:
–       Não espero com isso que pensem que me encontro naquela situação financeira invejável, que não dependo mais de ganhar dinheiro para subsistir. Como todo mundo, tenho de pagar a empregada, de fazer face às despesas comuns, de vestir-me, de enfrentar o condomínio e por aí vai.

O dia em que Maysa chorou

Semana passada, no Programa Flávio Cavalcanti, interrogada por que parou de cantar, Maysa chorou. De boca em boca, em meio ao seu numeroso público, o fato foi bastante sensibilizado, sensibilizou a muitos.
–       Tenho vivido momentos de angústia, entremeados de vontade de viver e, ao mesmo tempo, muito medo. No caso do meu momento artístico, essa angústia que chegou a me levar às lágrimas vem do conflito em não afinar com o estabelecido. É um retrato do meu estado, minha verdade do momento. Não pretendo entrar no esquema e por isso parei. Não aceito cantar o que me impõem e disso não me afasto.
Possível fruto da sua tão decantada instabilidade emocional, as lágrimas de Maysa podem perfeitamente se alternar com seu largo sorriso para a vida, como o momento em que recebe nossa reportagem.
–       Acho essa instabilidade uma condição maravilhosa de vida. Se para muitos ou mesmo para a maioria isso signifique uma pesada carga, para mim não é de forma alguma.
Através dos anos, esta tem sido a tônica de sua vida. Se em alguma coisa Maysa mudou em relação as suas angústias, o fato de não as curtir mais como no passado se constitui numa das poucas mutações que sua personalidade sofreu.
–       Não se evolui nunca, mesmo nas coisas erradas – pontifica.
A dinâmica de Maysa, que pode ser absurda para a generalidade, tem na sua ótica da vida, uma coerência que ela considera cristalina. E não tem a mínima preocupação de explicar-se. Tudo o que diz parece dize-lo para si própria, numa absoluta independência da opinião.
–       Houve um tempo em que eu adorava a entourage. Não afirmo que ela,integrada de meus melhores amigos, deixe de ter validade para mim, mas ocorre que já não dependo mais dela. Prescindir disso tem um alto significado para mim, porque significa um encontro mais profundo com o meu eu.
Esses amores à solidão absoluta, a essa comunhão íntima consigo mesma, chega à exacerbação, quando comenta:
Tu – Quem pensa que está só com seus livros, seus discos, seus pequenos hobbies, na realidade não está só, mas buscando um sucedâneo. Não deixa de ser a presença de outro, do outro, ali presente na obra de arte. A solidão a que me refiro é a absoluta; só, consigo mesmo, no silêncio e isolamento do seu eu. É assim que cultivo a minha solidão, sem nenhuma dependência. Um bastar-me absoluto.



Sua última criação


Com Aloysio de Oliveira, deverá produzir seu próximo LP, o 22º.
–       Aloysio é um dos homens mais sensíveis no mundo da produção musical. Ele afina demais comigo no seu extremo desapego ao dinheiro. Poderia ser milionário, mas a sua fidelidade ao que faz, sua honestidade artística são um entrave à fortuna. Junto-me a ele porque sei que não vão surgir as questões cretinas para gravar isso ou aquilo “porque está na onda”. O que ele primeiro cogita é de saber o que estou querendo cantar, o recado que estou pretendendo dar. E isso é tudo pra mim.
Na véspera da entrevista, Maysa lançou uns versos no papel.
–       Poderão virar uma canção ou poderão ficar, como tantos outros, rolando pelas minhas gavetas.
Maysa nos transmite em primeira mão:
–       “Um caminho limpo/quase que perfeito/eu podendo tudo/me perdendo em nadas/Tanta busca vaga/sem encontros – nunca./Tanta angústia opaca/sem poder ver nada/a mão que me afaga/esqueço de lembrar-me/os beijos que me cercam/porque eu fujo tanto/Meu canto que preciso/eu calo num soluço/que medo dessa vida/que medo do que eu faço/não sei mais o que quero/não sei mais o que posso/o jeito é dar um jeito/de olhar lá para frente/e dar-te finalmente/o meu imenso cansaço/e ir de pouco em pouco/me morrendo nos teus passos”
Quando acaba de ditar os versos, faz um comentário:
–       Isso foi ontem, eu era isso ontem, posso ser sempre isso ou não o ser nunca mais.
Abstrai-se por uns momentos e depois fala como se fosse para si mesma:
–       Pensar é muito ruim.

Peculiaridades


A cada momento, o temor confesso de estar parecendo vender uma imagem. Maysa parece viver em permanente estado de vigilância a uma autenticidade que cultuava com uma larga dose de veemência. Tudo o que lhe diz respeito só parece interessar a si mesma. Está pintando e só com muita relutância exibe seus estudos e pesquisas. Enquanto vai sendo fotografada, nega-se a ajeitar-se, reluta. Vez por outra, dá língua para o fotógrafo. Diz que está feia e complementa:
–       Se pareço melhor é porque estou maquilada. Não gosto de maquilagem porque não mostra a cara que está por dentro.
Fala de uma de suas frustrações: não fazer jornalismo. Gostaria de sair por aí, pelos cantos não badalados da Europa, retratar a gente dos campos, ouvir seus depoimentos.
Já vai muito longe aquela etapa dos porres homéricos, mas não faz o jogo da bem comportadinha:
–       Vez por outra, tomo meus tragos. Não beber também é inútil.
Por “respeito ao público” vem mantendo a silhueta, “na base da cuca e um regime moderado”, sem abstinências absurdas.

Mais que nunca é preciso cantar


Cantar é essencial para Maysa. Por isso ela não pretende parar nunca. Há fases de recesso, como esta que ela viveu agora. Só não acontecerá é cantar como obrigação, que isso não se coaduna com o fantástico respeito que tem por si mesma:
–       Respeito e admiro muito o que faço.
Quando menos se esperar, ela poderá estar voltando num show como o primeiro que ela apresentou no Canecão, quando por quatro meses manteve a imensa cervejaria lotada todas as noites. Seu público é muito fiel.
Dos compositores da nova geração põe em destaque Milton Nascimento e Chico Buarque, fazendo uma ressalva para o último:
–       Gosto mesmo do Chico é dessa segunda fase, depois de sua volta da Itália.
Sente-se muito à vontade com a atual temática e cogitação da nossa música atual e diz o porque:
–       Há 18 anos eu já vinha fazendo isso.

Tolerância com limites


–       Me vejo um ser humano bacana – exprime-se sem denotar jactância, e suas considerações seguintes justificam a afirmativa:
–       Não procuro julgar ninguém. Esse mesmo respeito que exijo em relação a mim devolvo às pessoas. Não existe ninguém ruim. Que cada um faça o que entender e do que gostar, não importa o que. Perdoe o lugar-comum, mas nada tão certo como o princípio de que a liberdade de cada um termina quando começa a do outro. Por isso tudo é válido, desde que sincero e autêntico. Mas também nisso tudo não cedo num ponto. É quanto a burrice na sua totalidade. Esses de forma alguma deveriam existir. A pessoa que apela para a burrice não tem direito de viver. Essa, sim, é a maior e pior desgraça da humanidade.

A angústia permanece como sendo seu principal tema e razão do seu recesso.

O recesso de Maysa da vida artística partiu de um conflito inerente aos verdadeiros artistas: a guerra entre a necessidade de criar e ganhar dinheiro.






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