Maysa está chorando
No ar: Maysa chorou em colorido
Texto de
Afrânio Brasil Soares · Fotos
de Geraldo Viola
Num programa de
televisão em que fazia parte do júri, Maysa chorou, quando interrogada por que
abandonara o canto. Vivendo angústias existenciais, decretou seu recesso,
privando seu enorme público de enternecesse com o calor de sua interpretação, o
verde felino de seus olhos e a esplêndida seleção de seu repertório.
–
Por que não? – interroga Maysa, deixando no ar, no
hermetismo da indagação, a explicação que ela julga claríssima, da razão de seu
afastamento do público.
–
Comecei fazendo uma coisa e hoje tudo mudou.
Rebelde
às fórmulas, às conceituações habituais, aos lugares-comuns com que os artistas
costumam definir suas disposições psicológicas, Maysa embatuca em cada
colocação dos problemas. Tem para cada situação sua maneira de ver e,
sobretudo, de transmitir o seu estado de alma.
–
Eu sou – sintetiza, absolutamente alheia à interpretação
que a mente comum tente tirar dessa definição de si mesma, buscando,
seguramente, nessa economia de termos, expressar autenticamente o que julga
suficiente transmitir de um mundo interior riquíssimo de achados, que suas mil
vivências deram como resultado uma singularíssima personalidade.
–
Para mim o essencial é a satisfação íntima.
Essa
satisfação íntima permanece, como o mais coerente eixo de uma personalidade
inabalável, a razão de sua teimosia em aceitar o status quo. Trocado em miúdo,
é ela mesma que tenta a explicação:
–
Meu caso é viver o meu canto e vender o meu tempo.
Os
esquemas, as fórmulas publicitárias, as regras do jogo, a busca do sucesso
fácil, a produção dirigida para o que está no momento ao gosto do público –
antes de irritar sua sensibilidade de artista autêntica – provocam-lhe uma
espécie de cansaço e enfado, algo que não se afina absolutamente com as suas
cogitações.
Inútil
tentar enquadrar Maysa no contexto dos artistas comuns, desses que andam por aí
a falar de comunicação, a repetir os chavões nas entrevistas de imprensa,
ciosos de agradar o maior número de ouvintes ou de leitores.
–
Me dou ao luxo de fazer poesia e música para mim mesma –
salientando, logo a seguir:
–
Não espero com isso que pensem que me encontro naquela
situação financeira invejável, que não dependo mais de ganhar dinheiro para
subsistir. Como todo mundo, tenho de pagar a empregada, de fazer face às
despesas comuns, de vestir-me, de enfrentar o condomínio e por aí vai.
O dia em que Maysa chorou
Semana
passada, no Programa Flávio Cavalcanti, interrogada por que parou de cantar,
Maysa chorou. De boca em boca, em meio ao seu numeroso público, o fato foi
bastante sensibilizado, sensibilizou a muitos.
–
Tenho vivido momentos de angústia, entremeados de vontade
de viver e, ao mesmo tempo, muito medo. No caso do meu momento artístico, essa
angústia que chegou a me levar às lágrimas vem do conflito em não afinar com o
estabelecido. É um retrato do meu estado, minha verdade do momento. Não
pretendo entrar no esquema e por isso parei. Não aceito cantar o que me impõem
e disso não me afasto.
Possível
fruto da sua tão decantada instabilidade emocional, as lágrimas de Maysa podem
perfeitamente se alternar com seu largo sorriso para a vida, como o momento em
que recebe nossa reportagem.
–
Acho essa instabilidade uma condição maravilhosa de vida.
Se para muitos ou mesmo para a maioria isso signifique uma pesada carga, para
mim não é de forma alguma.
Através
dos anos, esta tem sido a tônica de sua vida. Se em alguma coisa Maysa mudou em
relação as suas angústias, o fato de não as curtir mais como no passado se
constitui numa das poucas mutações que sua personalidade sofreu.
–
Não se evolui nunca, mesmo nas coisas erradas – pontifica.
A
dinâmica de Maysa, que pode ser absurda para a generalidade, tem na sua ótica
da vida, uma coerência que ela considera cristalina. E não tem a mínima
preocupação de explicar-se. Tudo o que diz parece dize-lo para si própria, numa
absoluta independência da opinião.
–
Houve um tempo em que eu adorava a entourage. Não afirmo
que ela,integrada de meus melhores amigos, deixe de ter validade para mim, mas
ocorre que já não dependo mais dela. Prescindir disso tem um alto significado
para mim, porque significa um encontro mais profundo com o meu eu.
Esses
amores à solidão absoluta, a essa comunhão íntima consigo mesma, chega à
exacerbação, quando comenta:
Tu –
Quem pensa que está só com seus livros, seus discos, seus pequenos hobbies, na
realidade não está só, mas buscando um sucedâneo. Não deixa de ser a presença
de outro, do outro, ali presente na obra de arte. A solidão a que me refiro é a
absoluta; só, consigo mesmo, no silêncio e isolamento do seu eu. É assim que
cultivo a minha solidão, sem nenhuma dependência. Um bastar-me absoluto.
Sua última criação
Com
Aloysio de Oliveira, deverá produzir seu próximo LP, o 22º.
–
Aloysio é um dos homens mais sensíveis no mundo da
produção musical. Ele afina demais comigo no seu extremo desapego ao dinheiro.
Poderia ser milionário, mas a sua fidelidade ao que faz, sua honestidade
artística são um entrave à fortuna. Junto-me a ele porque sei que não vão
surgir as questões cretinas para gravar isso ou aquilo “porque está na onda”. O
que ele primeiro cogita é de saber o que estou querendo cantar, o recado que
estou pretendendo dar. E isso é tudo pra mim.
Na
véspera da entrevista, Maysa lançou uns versos no papel.
–
Poderão virar uma canção ou poderão ficar, como tantos
outros, rolando pelas minhas gavetas.
Maysa
nos transmite em primeira mão:
–
“Um caminho limpo/quase que perfeito/eu podendo tudo/me
perdendo em nadas/Tanta busca vaga/sem encontros – nunca./Tanta angústia
opaca/sem poder ver nada/a mão que me afaga/esqueço de lembrar-me/os beijos que
me cercam/porque eu fujo tanto/Meu canto que preciso/eu calo num soluço/que
medo dessa vida/que medo do que eu faço/não sei mais o que quero/não sei mais o
que posso/o jeito é dar um jeito/de olhar lá para frente/e dar-te finalmente/o
meu imenso cansaço/e ir de pouco em pouco/me morrendo nos teus passos”
Quando
acaba de ditar os versos, faz um comentário:
–
Isso foi ontem, eu era isso ontem, posso ser sempre isso
ou não o ser nunca mais.
Abstrai-se
por uns momentos e depois fala como se fosse para si mesma:
–
Pensar é muito ruim.
Peculiaridades
A cada
momento, o temor confesso de estar parecendo vender uma imagem. Maysa parece viver
em permanente estado de vigilância a uma autenticidade que cultuava com uma
larga dose de veemência. Tudo o que lhe diz respeito só parece interessar a si
mesma. Está pintando e só com muita relutância exibe seus estudos e pesquisas.
Enquanto vai sendo fotografada, nega-se a ajeitar-se, reluta. Vez por outra, dá
língua para o fotógrafo. Diz que está feia e complementa:
–
Se pareço melhor é porque estou maquilada. Não gosto de
maquilagem porque não mostra a cara que está por dentro.
Fala de
uma de suas frustrações: não fazer jornalismo. Gostaria de sair por aí, pelos
cantos não badalados da Europa, retratar a gente dos campos, ouvir seus
depoimentos.
Já vai
muito longe aquela etapa dos porres homéricos, mas não faz o jogo da bem
comportadinha:
–
Vez por outra, tomo meus tragos. Não beber também é
inútil.
Por
“respeito ao público” vem mantendo a silhueta, “na base da cuca e um regime
moderado”, sem abstinências absurdas.
Mais que nunca é preciso cantar
Cantar é
essencial para Maysa. Por isso ela não pretende parar nunca. Há fases de
recesso, como esta que ela viveu agora. Só não acontecerá é cantar como
obrigação, que isso não se coaduna com o fantástico respeito que tem por si
mesma:
–
Respeito e admiro muito o que faço.
Quando
menos se esperar, ela poderá estar voltando num show como o primeiro que ela
apresentou no Canecão, quando por quatro meses manteve a imensa cervejaria
lotada todas as noites. Seu público é muito fiel.
Dos
compositores da nova geração põe em destaque Milton Nascimento e Chico Buarque,
fazendo uma ressalva para o último:
–
Gosto mesmo do Chico é dessa segunda fase, depois de sua
volta da Itália.
Sente-se
muito à vontade com a atual temática e cogitação da nossa música atual e diz o
porque:
–
Há 18 anos eu já vinha fazendo isso.
Tolerância com limites
–
Me vejo um ser humano bacana – exprime-se sem denotar
jactância, e suas considerações seguintes justificam a afirmativa:
–
Não procuro julgar ninguém. Esse mesmo respeito que exijo
em relação a mim devolvo às pessoas. Não existe ninguém ruim. Que cada um faça
o que entender e do que gostar, não importa o que. Perdoe o lugar-comum, mas
nada tão certo como o princípio de que a liberdade de cada um termina quando
começa a do outro. Por isso tudo é válido, desde que sincero e autêntico. Mas
também nisso tudo não cedo num ponto. É quanto a burrice na sua totalidade.
Esses de forma alguma deveriam existir. A pessoa que apela para a burrice não
tem direito de viver. Essa, sim, é a maior e pior desgraça da humanidade.
A angústia
permanece como sendo seu principal tema e razão do seu recesso.
O recesso de Maysa da vida artística partiu de um conflito inerente aos verdadeiros artistas: a guerra entre a necessidade de criar e ganhar dinheiro.
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