30 de dezembro de 2024

Cinquentenário do álbum Maysa (1974)

 


    Lançado há cinquenta anos, em dezembro de 1974, nos formatos de LP e fita cassete, o disco intitulado apenas Maysa ganhou em meio século uma única reedição em CD, nos anos 1990. Pouco comentado, é lembrado mais por ser o último trabalho em disco de Maysa, do que propriamente pelo seu conteúdo, uma grande injustiça. O álbum marcava o reencontro de Maysa com o veterano produtor Aloysio de Oliveira, com quem já havia realizado dez anos antes o seu primeiro e melhor disco ao vivo, lançado pelo selo independente de Aloysio que marcou época no período da bossa nova: a Elenco. Em 1973, Aloysio iniciara um novo projeto junto a gravadora, dessa vez chamado Evento. O disco de Maysa foi um dos três primeiros lançamentos desse selo de curtíssima duração e pouca repercussão, junto a um novo LP de Billy Blanco em louvação a cidade de São Paulo e o relançamento do álbum de 1958 que reuniu Dorival Caymmi e Ary Barroso. 
    Gravado num raro período de calmaria na carreira de Maysa, o álbum, que do início ao fim levou um ano para ser lançado, comunicava o seu estado de isolamento, tanto na indústria musical quanto no pleno pessoal, como ela revelou em entrevista ao jornal O Globo na época:
 “Meu único programa, atualmente, é passar o maior tempo possível na minha casa em Maricá. Só voltarei a ter uma vida artística mais ativa se puder fazer tudo com muita calma. Senão, fico apenas no disco, que está aí para quem quiser ouvir. É o que tenho para dar”. 
    O repertório do disco seguia os moldes do seu antecessor, o célebre Ando Só Numa Multidão de Amores (1970) – mais músicas antigas com roupagem nova e poucas contemporâneas. A diferença principal de um trabalho para o outro é a escolha aparentemente inusitada de clássicos carnavalescos como “Agora é Cinza” e “Rasguei a Minha Fantasia” que ganharam novo sentido na interpretação de Maysa. Um movimento semelhante ao que Elis Regina fizera em seu álbum de 1973, quando gravou “É com esse que eu vou”. Sentido novo também ganhou a sua versão da música que abre o disco, “Bloco da Solidão”, da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia, que Maysa gravou com um surdo num dos melhores arranjos que o maestro Gaya fez para o álbum. Incluída no LP de Jair Rodrigues Festa Para um Rei Negro (1971), Maysa transformou “Bloco da Solidão” de um hino festivo para uma pungente declaração de mágoa que não se deixa abater por nada. Entre as poucas músicas “atuais” do disco, ela garimpou verdadeiras pérolas. 
    As outras são “Até Quem Sabe” de João Donato, gravada em seu álbum Quem é Quem? (1973); mas que Maysa pode ter ouvido na voz da amiga Gal Costa, que incluiu a música no álbum Cantar, lançado meses antes do LP dela. Preciosa também é a sua versão jazzística para o maior sucesso de Antônio Carlos e Jocafi, “Você Abusou”, que Maysa cantou com propriedade única, deslocando para a primeira estrofe os versos “Mas não faz mal/É tão normal ter desamor/É tão cafona sofrer dor que eu já nem sei/Se é meninice ou cafonice o meu amor...”. Ninguém deve ter entendido nada, uma pena. Novidade mesmo, apenas duas e mesmo assim pela metade. Uma era “Não Sei” – letra de Aloysio para o antigo standard estadunidense “No Other Love” (e que por si só era baseada numa melodia de Chopin). A segunda, “Não é Mais Meu”, letra da própria Maysa para um tema instrumental da novela Eu Compro Esta Mulher (1966), que ela gravou para “fazer um carinho” no namorado de então, o ator Carlos Alberto, que atuou na novela da TV Globo. 
  “O resto das músicas é de gente que estava comigo, quando comecei. Há pedaços de Silvinha Teles, de Dolores, de Aloysio, de Marisa. Não se trata de um saudosismo burro, de fossa, mas de um estado de espírito”. 
    Embora esquecido hoje em dia, naquela época houve uma certa excitação entorno do lançamento do novo disco da cantora, que apresentou as músicas dele no Fantástico com quase dois meses de antecedência. Ela também mostrou a regravação de “Morrer de Amor” no Especial Maysa, exibido na TVE-RJ no mesmo ano. Ocasião em que comentou o novo álbum e recebeu elogios de Tom Jobim; que naquele momento também tinha Aloysio de Oliveira como diretor da produção do afamado álbum que Elis Regina e ele gravaram em 1974. Não existem números seguros que informem o desempenho comercial do último álbum de Maysa, um indicativo de que provavelmente não foi um êxito de vendas. A revista Veja, numa crítica ranzinza, avaliou bem a performance vocal de Maysa, mas considerou que ela “perdia” para os arranjos “grandiloquentes” do maestro Gaya. O que não deixa de ser verdade e abre espaço para imaginarmos o que teria resultado o encontro de Maysa com a guitarra e o violão de Lee Ritenour e Oscar Castro Neves (que fez os arranjos de base do LP dela) – dupla que à mesma época, registrou um belo álbum de bossa nova sob a tutela de Aloysio no selo Evento. Só podemos imaginar. 
    Uma curiosidade é que o álbum lançado pela Odeon em dezembro de 1974 não se trata da última gravação de Maysa em estúdio. No ano seguinte, ela registraria um obscuro compacto pela Som Livre, contendo de um lado uma regravação pouco inspirada de “Ouça”, e do outro o tema da novela Bravo! para o qual escreveu uma letra que chegou a renegar pouco tempo depois. É possível que tenha sido esse compacto que motivou Maysa a reclamar do uso excessivo de cordas em orquestração, durante a última entrevista que ela concedeu, em novembro de 1976. Contudo, se os últimos anos de sua vida artística foram titubeantes, o último álbum permanece como uma delicada conclusão de uma etapa. Assim como o primeiro LP da cantora e compositora, lançado em novembro de 1956; por coincidência, o último álbum também não mostrava a foto de Maysa na capa, apenas aquarelas de gatos feitas por ela. Maysa pinta e borda, literalmente, em seu último disco. Se ele começa extremamente dolorido, ao longo das outras onze faixas Maysa vai transfigurar as emoções como bem entende; seja expondo a melancolia oculta nos sambas alegres de carnaval, ou trazendo à flor da pele a tristeza inerente a todas as decepções e esperanças de viver um amor. E é o amor incondicional à vida que Maysa proclama na última faixa, “Hoje é dia de amor” de Luiz Bonfá e Maria Helena Toledo, gravada dez anos antes por Rosana Toledo e Dick Farney. É possível notar que ela termina sorrindo a última frase da canção – “tudo insiste em fazer voltar/Pra esse céu/Pra esse mar/E o amor” – difícil imaginar um jeito mais bonito de encerrar uma discografia. 


Veja aqui o Especial de Maysa exibido na TVE-Rio em 1974.

Um Encontro (1974) álbum de Lee Ritenour & Oscar Castro Neves 


Leia mais sobre o último álbum de Maysa aqui.






3 de junho de 2024

Maysa entrevistada por Djenane Machado, 1971


Por vezes não contamos com todas as informações sobre uma reportagem como é o caso desta entrevista de Maysa por Djenane Machado. Não sei em qual revista ela foi publicada, mas certamente foi no ano de 1971. Quando Djenane e Maysa estavam no elenco da novela O Cafona da TV Globo. 


As Reportagens de Djenane 

Maysa: - Eu me matava por desamor


Quando eu estava no primário, tinha uma mania: desenhar olhos de pessoas famosas nos meus cadernos. Tinha verdadeira obsessão por olhos bonitos. Fazia-os com um esforço desgraçado porque sempre fui uma negação em desenho. Eu desenhava os olhos em cima e o nome da pessoa embaixo. Era gozadíssimo... Tinha uns preferidos, verdes, imensos, e o nome vinha embaixo: Maysa...

Eu cresci, Maysa viajou; estudei teatro; ela fazia um tratamento numa clínica na Espanha. Eu me tornei atriz. Eu me tornei atriz e entrei para a tevê; ela volta para o Brasil. Linda, magra, cantando como nunca. Foi aquele espanto, aquela alegria. Todos queriam saber se ela tinha mudado, como tinha emagrecido, que diabo tinha acontecido depois daquele tempão todo. Choveram entrevistas. E foi por causa destas entrevistas que embatuquei e cismei com ela de vez.

Maysa era um pouco eu. Seu modo de pensar, seus problemas, angústias tinham muito a ver comigo. Poxa, pensei comigo mesma, achei uma pessoa que não vai se assustar com meus problemas porque seus grilos são parecidos com os meus. Fui ver o seu show no Canecão e jurei que ia ser amiga dela. Não deu outra coisa, claro...

Houve de cara uma comunicação muito forte, imensa e acho eterna. Quando acontece um troço bacana ou então ela está na fossa, liga pra mim e eu corro para a casa dela pra gente curtir juntas. Enfim, a gente se dá muito bem, a gente briga muito, mas nada diminui o carinho. Hoje, pra mim, ela não se chama Maysa. Chama-se Ma. E eu passei a ser DG.



EU – Ma, me conta da tua infância, da tua babá, da tua mãe, do teu pai, das coisas que te marcaram. Da tua casa.

ELA – A minha infância foi uma árvore, um mar que servia de quintal de minha casa, foi um amor muito grande e de muita certeza, coragem. Foi boa demais para o que estava por vir. E veio, e como... minha babá, que continua comigo até hoje, continua com aquele cheirinho de alfazema no cangote onde muitas vezes eu me agarrava de medo da noite e do escuro. Mamãe, aquela mulher intocável, linda. A minha deusa. Papi, aquele ser quase proibido, sempre longe por causa do seu trabalho, forte como uma árvore, doce como um beijo que me dava no travesseiro quando estava no colégio interno, vivendo a imagem dele e de mamãe, naquela carícia medrosa e sozinha. Tudo me marcou na minha infância, porque eu sabia que ela ia terminar rápido.

- Ma, me conta do teu colégio (se você era boa aluna ou se tinha boas amigas).

- Meu colégio não era ruim. Eu é que era ruim no colégio, não por falta de disciplina, mas por saber que estando interna eu estava perdendo a juventude de meus pais.

 - Esse problema do seu pai e da sua mãe te marcou muito. Você é triste por causa disso?

- Triste, eu acho; mais que triste, só.

- Você tinha muitas amigas?

- Nunca pude ter amigas. Nunca me entendi muito com mulheres.

- Por que você diz sempre que sua mãe era uma deusa para você. Por que sempre era, no passado?

- Ela ainda é. Só que agora ela é minha também. Antes era só do papai.

- E André, teu primeiro marido, ele era super-mais-velho que você. E você uma garotinha. Você achava isso legal?

- No princípio, André era a figura do pai. Depois, mudou e eu passei a ser a mãe dele. Então, eu cansei. E descansei...

- Me conta um troço, Ma. Sempre achei o suicídio um ato de extrema coragem. Quando você tentava se suicidar, você realmente queria acabar com tudo ou o que você queria, no fundo, era começar outra coisa diferente?

- Os meus suicídios sempre foram pra valer. Geralmente, eu só faço as coisas pra valer. Depois, foi que eu descobri que aquilo era uma enorme procura de amor, de chamar atenção sobre mim. É, é um ato de coragem. Mas é a coragem mais inútil que eu já vi.

- Sabia que você ia dizer isso. Você já tentou a análise?

- Eu já me meti em análise, sim.

- Você teve coragem mesmo de se conhecer?

- Eu acho que sim, que teria coragem de me conhecer, não sei por quê, não? Mas prefiro conhecer os outros, gastar meu tempo conhecendo os outros. É mais importante para mim, é claro.

- Falou e disse...

- Ma, por que você bebe? Se eu sei que você tem horror ao gosto da bebida?

- Por que é que eu bebo, DG? Pela mesma razão que você. Realmente, eu não gosto do gosto da bebida. Mas tem o efeito depois. Às vezes, é bom. Às vezes, não, como você sabe tão bem.

- Mas eu gosto do gosto. Me responde agora. Eu sei que você adora a Elis Regina. E sofre à beça essa distância. Por que você não tenta se aproximar dela?

- Djenane, você às vezes julga os outros por si mesma. Nós temos, eu e você, alguma coisa em comum, mas nesse ponto não. Quem adora a moça é você. Eu, não. Quanto a sofrer a distância, como é que a gente sofre a distância se nunca houve presença? Você é que está sofrendo, porque ruiu a historiazinha que você fabricou, querida.

- Você muda muito de opinião, Dona Maysa. E que historiazinha é essa? Como eu gosto muito de você e gosto também dela, queria que vocês fossem amigas, só isso. Vamos mudar de assunto. Quais são as coisas que mais te emocionam num ser humano?

- As coisas que mais me emocionam num ser humano, é? A capacidade de amor, de humanidade que possa caber dentro de uma pessoa. Mesmo que sejam pequeninas. De tamanho, estou dizendo?

- Eu não sei se a senhora está me espinafrando ou se está me elogiando. Como eu sou uma moça muito educada, pelo sim pelo não, obrigada pela parte que me toca. O que é que você primeiro olha numa pessoa?

- Nos olhos. Pra mim, as pessoas estão dentro dos seus olhos.

- O que é que você não gosta numa pessoa? Aquilo que você não admite?

- Apunhada pelas costas, a mentira gratuita, as pessoas falsas, mesquinhas. São odiosas.

- Você acredita nas pessoas? Porque a impressão que você me dá é de que você só acredita em você mesma. Ponto final.

- Você vê. Se eu não tivesse acreditado em você, eu poderia ter ido dormir sem essa afirmação idiota sua. Se eu só acreditasse em mim, DG, eu já estaria morta, morta mesmo.

- Calma. Era só uma impressão minha, poxa. Guarda a faca afiada e o revólver e vamos mudar o assunto de novo.

- O que é que você queria, agora?

- No presente momento, gostaria de já ter estreado no teatro. Amanhã ou mesmo daqui a pouco, eu não sei...

- Do que é que você gosta?

- De tanta coisa. De Leila, por exemplo (Leila é uma criatura divina que a gente conhece. Uma pessoa tão boa, tão desarmada, dessas que não existem mais).

- Do que é que você tem medo?

- Eu não tenho medo de nada. Só de gente burra.

- Você não tem medo da solidão?

- Eu odeio a solidão quando não posso estar só. Eu amo a solidão quando preciso dela.

- Eu sei que você tem sempre uma musiquinha que você curte à beça. Foi o Midnight Cowboy, depois outras, e agora, qual é?

- Agora é o Tema de Simone. Modesto, né?

- Ultimamente, você já esteve tão feliz a ponto de querer que o tempo parasse?

- Faz tempo que não. E não sei até onde o tempo devesse parar. As coisas se tornariam muito iguais, portanto muito chatas.

- Qual é a hora do dia mais chata para você?

- A hora em que vejo um cachorrinho ou um animalzinho qualquer com fossa, só, sem possibilidades de poder falar. Nada há mais triste, seja a hora em que for!

- Que lindo e que triste, poxa. Vamos brincar um pouco agora, Ma. Eu digo uma palavra e você associa a outra. Tem que ser a primeira que vier à cabeça, senão não vale. Quero ver como anda a sua cuquinha (não perco essa mania de psicóloga).

Djenane – Saudade.

Maysa – Filme.

D – Felicidade.

M – Mar.

D – Amizade.

M – DG.

D – Homem.

M – Pai.

D – Mulher.

M – Eu.

D – Avião.

M – Desejo.

D – Miguel.

M – Paz.

D – Violência.

M – Amor.

D – Telefone.

M – Chato.

D – Eu.

M – Eu.

D – Árvore.

M – Teatro.

D – Sexo.

M – Paz.

D – Fim.

M – Começo.




Ary Fontoura, Maysa, Tônia Carrero, Marília Pêra e Djenane Machado em festa oferecida ao elenco da novela O Cafona na casa do produtor Carlos Machado, 29/04/1971. Foto: Ronald Fonseca. O Globo.