25 de fevereiro de 2014

Imprensa: O que há com Maysa? - Jornal do Brasil, 23/05/1962


O que há com Maysa?

José Carlos Oliveira


Acompanho Maysa, de longe, desde que ela surgiu em São Paulo. Interessaram-me, inicialmente, aqueles indícios de uma existência insatisfeita e que variava bruscamente. Primeiro, Maysa Monjardim, menina em Vitória, onde também eu cresci; depois, Srª Maysa Matarazzo, bela, rica e voluntariosa. Aos 21 anos, quando as mulheres começam a viver, ela abandonava o matrimônio para entregar-se à música, ao público que estava precisando daquela mulher atormentada e talentosa, e também ao vício: a própria cantora parecia interessada numa publicidade que colocava o alcoolismo e a solidão como elementos indispensáveis à atmosfera Maysa. Escândalos; suicídios frustrados; canções tristes que ela mesma compunha, sintetizando as suas dificuldades num conflito pronominal (é a palavra exata) que conheço de perto. Eu tenho muitos mim – ou isto estava num poema de Carlos Drummond de Andrade? Pouco importa; Maysa é quem vive essa dificuldade que no poeta não passaria de um sofrimento encantador – o sofrimento feliz ocasionado pelo conhecimento de infinitos e tênues significados. Maysa, no entanto, usa os pronomes para exprimir a obliqüidade, o caráter resvalante do seu ser – ela é sempre outra coisa, sempre inatual em relação a si mesma, e este é o seu drama particular. Não se apega a nada; não crê em nada; tem medo de amar; entregar-se com sofreguidão, em seguida se recolhe ao anonimato do seu sofrimento e complexidade; o álcool, então, é sedativo eficaz. Maysa e Ava Gardner são muito parecidas.
O Cruzeiro desta semana publica uma reportagem cruel sobre Maysa. Cruel, mas consentida; a cantora se humilha publicamente, ao mesmo tempo em que reivindica o respeito público para as suas singularidades e quedas. Mostra-se inteira, e quer ser aceita na sua dimensão; antes de tudo, é autêntica, como todos os malditos. Seus versos em espanhol: “Quién ha muerto? El mundo, o Yo?” Falam sempre na solidão e no abandono. Ela precisa de amor, mas foi esquecida: “No oyen mis gritos. Quedé dormida y creyerón o pensarón: se murió.” O desejo, imorredouro, de novas quedas – em suma, ela quer destruir-se, renasce no isolamento, corroendo e negando esse bem inestimável que é a paz: “Es una tarde tan calma, tan calma que puede ser monótona.”
A imagem de Maysa na televisão. Os grandes olhos de pantera, dementes, sagazes, no rosto de traços meigos; o sorriso de mulher que sofreu muito... Ela reclama que se esqueceram dela, e no entanto, eu, que não cultivo os ídolos populares e raramente ouço os seus discos, surpreendo-me muitas vezes sentindo saudades dela. Fico triste de não ter conhecido Maysa quando criança; e que nossos caminhos não se tenham cruzado até hoje. Com minhas habilidades para cativar as mulheres desorientadas, certamente eu a faria esquecer, por momentos, o excesso de personalidades que dentro dela esperneiam – a triunfante, a bovariana, a medrosa, a sentimental, a enfurecida, a doida Maysa – cada personalidade se levantando no coração e sugerindo um caminho, um estilo, uma fuga, um encontro. E Maysa escravizada a cada impulso, correndo para onde ele a encaminha, julgando ser essa a viagem da verdade. Depois, como sempre, as mãos vazias, a decepção, a amargura: “Parece que el tiempo, cansado, monótono, y que se olvidaron de mi...” Percebe-se, nesse lamento, que sua existência não sabe como escapar ao ciclo fatal que se inicia no bar e no amor mendigo, e termina, matematicamente, na clínica de repouso. Pobre Maysa! Onde está o teu homem? Onde está a tua paz? Onde está a felicidade na qual acreditas firmemente? – na qual acreditas com uma obstinação admirável? Eu te compreendo, e compreendo o conflito que te dilacera; e por isso mesmo gostaria de dizer-te que a maldição particular de que te consideras vítima é algo bastante generalizado e, ai de nós, insolúvel. Só os malditos, Maysa, merecem a felicidade, mas só para eles é que ela não foi feita.


(Matéria publicada originalmente no Caderno B do JORNAL DO BRASIL em 23 de maio de 1962)

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