O que há com Maysa?
José Carlos Oliveira
Acompanho
Maysa, de longe, desde que ela surgiu em São Paulo. Interessaram-me,
inicialmente, aqueles indícios de uma existência insatisfeita e que variava
bruscamente. Primeiro, Maysa Monjardim, menina em Vitória, onde também eu
cresci; depois, Srª Maysa Matarazzo, bela, rica e voluntariosa. Aos 21 anos,
quando as mulheres começam a viver, ela abandonava o matrimônio para
entregar-se à música, ao público que estava precisando daquela mulher
atormentada e talentosa, e também ao vício: a própria cantora parecia
interessada numa publicidade que colocava o alcoolismo e a solidão como
elementos indispensáveis à atmosfera Maysa. Escândalos; suicídios frustrados;
canções tristes que ela mesma compunha, sintetizando as suas dificuldades num
conflito pronominal (é a palavra exata) que conheço de perto. Eu tenho muitos
mim – ou isto estava num poema de Carlos Drummond de Andrade? Pouco importa;
Maysa é quem vive essa dificuldade que no poeta não passaria de um sofrimento
encantador – o sofrimento feliz ocasionado pelo conhecimento de infinitos e
tênues significados. Maysa, no entanto, usa os pronomes para exprimir a
obliqüidade, o caráter resvalante do seu ser – ela é sempre outra coisa, sempre
inatual em relação a si mesma, e este é o seu drama particular. Não se apega a
nada; não crê em nada; tem medo de amar; entregar-se com sofreguidão, em
seguida se recolhe ao anonimato do seu sofrimento e complexidade; o álcool,
então, é sedativo eficaz. Maysa e Ava Gardner são muito parecidas.
O
Cruzeiro desta semana publica uma reportagem cruel sobre Maysa. Cruel, mas
consentida; a cantora se humilha publicamente, ao mesmo tempo em que reivindica
o respeito público para as suas singularidades e quedas. Mostra-se inteira, e
quer ser aceita na sua dimensão; antes de tudo, é autêntica, como todos os
malditos. Seus versos em espanhol: “Quién ha muerto? El
mundo, o Yo?” Falam
sempre na solidão e no abandono. Ela precisa de amor, mas foi esquecida: “No
oyen mis gritos. Quedé dormida y creyerón o pensarón: se
murió.” O
desejo, imorredouro, de novas quedas – em suma, ela quer destruir-se, renasce
no isolamento, corroendo e negando esse bem inestimável que é a paz: “Es una
tarde tan calma, tan calma que puede ser monótona.”
A
imagem de Maysa na televisão. Os grandes olhos de pantera, dementes, sagazes,
no rosto de traços meigos; o sorriso de mulher que sofreu muito... Ela reclama
que se esqueceram dela, e no entanto, eu, que não cultivo os ídolos populares e
raramente ouço os seus discos, surpreendo-me muitas vezes sentindo saudades
dela. Fico triste de não ter conhecido Maysa quando criança; e que nossos
caminhos não se tenham cruzado até hoje. Com minhas habilidades para cativar as
mulheres desorientadas, certamente eu a faria esquecer, por momentos, o excesso
de personalidades que dentro dela esperneiam – a triunfante, a bovariana, a
medrosa, a sentimental, a enfurecida, a doida Maysa – cada personalidade se
levantando no coração e sugerindo um caminho, um estilo, uma fuga, um encontro.
E Maysa escravizada a cada impulso, correndo para onde ele a encaminha,
julgando ser essa a viagem da verdade. Depois, como sempre, as mãos vazias, a
decepção, a amargura: “Parece que el tiempo, cansado, monótono, y que se
olvidaron de mi...” Percebe-se, nesse lamento, que sua existência não sabe como
escapar ao ciclo fatal que se inicia no bar e no amor mendigo, e termina,
matematicamente, na clínica de repouso. Pobre Maysa! Onde está o teu homem?
Onde está a tua paz? Onde está a felicidade na qual acreditas firmemente? – na
qual acreditas com uma obstinação admirável? Eu te compreendo, e compreendo o
conflito que te dilacera; e por isso mesmo gostaria de dizer-te que a maldição
particular de que te consideras vítima é algo bastante generalizado e, ai de
nós, insolúvel. Só os malditos, Maysa, merecem a felicidade, mas só para eles é
que ela não foi feita.
(Matéria publicada originalmente no Caderno B do JORNAL DO BRASIL em 23 de maio de 1962)