21 de maio de 2018

"Estou querendo nascer de novo" - Intervalo nº 383, 1970



Bastante agressiva, às vezes desconfiando de um duplo sentido nas perguntas, Maysa ficou uma hora e meia às voltas com a equipe carioca de INTERVALO. Acendia um cigarro atrás do outro, mas até que estava tranquila diante dos repórteres. Parou de beber, emagreceu, vai voltar a cantar “fossa” e disse uma coisa muito importante: “Estou querendo nascer de novo”

TV – É verdade que você está fazendo psicanálise a 180 cruzeiros por dia?

MAYSA – É, mas ainda estou meio na base do medo. Agora comecei a ler Freud e isso está me confundindo mais ainda. Vou parar de ler porque se continuar acabo analisando o analista.
TV – Você está ensaiando um show no Teatro da Praia. Como vai ser?
MAYSA – Muito musical, com pouco texto, sem pernas de fora.
TV – Por que você achou ruim o show do Canecão?
MAYSA – Se eu tivesse achado ruim, não teria feito. Foi apenas um teste de uma imagem que eu estava oferecendo a um público para quem eu nunca tinha cantado. E as perninhas de fora faziam parte do teste.
TV – O teste foi pelo fato de ser cantora de gabarito numa cervejaria popular?
MAYSA – Eu sabia que era uma cervejaria enorme, mas não sabia que classe de show se fazia lá. Acontece que cheguei ao Brasil com uma carta compromisso para fazer um show na Sucata, mas quando o Canecão me fez a proposta, percebi que estava cansada de cantar em boate, para um pouquinho de gente. E eu fui feita pelo “Ouça”. “Ouça” atingiu todas as classes, Teresa de Sousa Campos cantava e o faxineiro também. Então já estava na hora de eu fazer um negócio para o povo, que realmente tinha me promovido. Vou fazer teatro agora, teatro também é mais para o povo do que boate.
TV – A gente tem a sensação de que você mudou muito de uns tempos para cá.
MAYSA – Não creio. Apenas, passaram-se dez anos, e esses dez anos serviram para amadurecer a fossa e me fazer saber qual era a hora da alegria. E outra coisa importante: hoje eu tenho coragem de só fazer o que me interessa. Antes eu fazia tudo porque não tinha outro jeito; hoje já enfrento as coisas com mais frieza. Isso que estou fazendo hoje, por exemplo, antes eu não fazia. Responder a um monte de perguntas de um monte de jornalistas. Bom, mas também a imprensa daquela época não dava mesmo pé. Era meio decadente, meio horror.
TV – Você acha que a imprensa é que foi responsável por aquela sua imagem de mulher angustiada, sofredora?
MAYSA – Não, a responsável fui eu mesma. A imprensa só aumentava um pouco as coisas. Eu realmente era uma mulher angustiada. Continuo sendo, só que hoje tenho consciência da minha angústia. Amadureci.
TV – Esse amadurecimento influiu na sua maneira de cantar?
Não creio. Tanto que, naquele show do Canecão, ataquei um pouco de covardia, me apegando às músicas antigas. Já no disco novo, aquele que estou com Jayminho na capa, enfrentei as minhas mudanças. Mas ficou parecendo que eu estava atacando de menina moderninha, e aí não dá. Não sou esse gênero, como Joyce, sei lá. No Teatro da Praia vou fazer o que gosto mesmo. Vou cantar músicas novas e também antigas, mas vestidas com roupagem nova. E sem exageros, por covardia.
TV – Bom, isso tudo quer dizer que agora você é mais profissional?
MAYSA – Puxa, mas muito mais. Sou profissional de três anos para cá. Antes, cantar era uma das maneiras de viver. Hoje, gosto muito mais do que estou fazendo. Naquela época não gostava, achava incômodo ter que ensaiar, dar entrevistas, que chato.
TV – Mas, se não gostava, por que fazia?
MAYSA – Taí, é uma boa pergunta. Fazia porque era uma forma de me afirmar. Como todo mundo disse que não devia, eu fiz. Agora, que todo mundo está de acordo, talvez eu pare...
TV – Quer dizer que você pensa em parar?
MAYSA – Evidentemente. Não sei, mas estou me achando muito obrigada a fazer as coisas. De certa forma, tenho saudade de antes. Fazia quando e como queria. Hoje estou com muita horinha marcada. Não sou capaz de dar bolo. Mas, aí, me sinto presa.
TV – Os anos que você passou fora do Brasil foram uma fuga?
MAYSA – Não. Foi querer descobrir um negócio novo. Fui e descobri Miguel. Mas não me lembro de muita coisa daquele período. Agora estou me lembrando de contratos, nos Estados Unidos e na França, que poderiam ter sido muito importantes e que eu chutei. Inconsequência mesmo.
TV – Você vai voltar a cantar na fossa porque quer ou porque estão fazendo pressão?
MAYSA – Ninguém está fazendo pressão.
TV – Mas você vai voltar a ser “aquela” Maysa?
MAYSA – “Aquela” vai ser meio difícil. Até a fossa mudou.
TV – No caso do “Ouça” por exemplo, o que foi mais forte:  o fato de ser você quem cantava ou a própria música?
MAYSA – Foi todo o conjunto. Mas, em primeiro lugar, o fato de uma Matarazzo começar a cantar. Vamos deixar isso bem claro. Uma Matarazzo cantando, o pessoal logo imaginava aquela mulher velha, gorda, de mãozinha cruzada no peito, chata de doer, imposta ao público por ter um nome poderoso. E não era nada disso, era uma menina de vinte anos cheia de problemas, de angústias, de voltas, choros e bebidas. Por isso tudo, “Ouça” funcionou. Era o conjunto de “Maysa, a fossa e a música”. Sempre a fossa no meio, o público vivia o meu problema.
TV – E como é que você se sentia quando a imprensa explorava o fato de você beber?
MAYSA – Não vamos falar nisso, a imprensa naquela época não existia. Mas foi bom porque saí daqui irritada e só por isso descobri coisas novas.
TV – Como vai o Jayminho?
MAYSA – Vai muito bem. Está há seis anos na Espanha, num colégio interno que dá uma educação moderníssima. É uma criança ótima, não pede a chave do carro, pede um sorvete. Vai fazer catorze anos agora, somos grandes amigos.
TV – Por que você o mantém na Espanha, em vez de trazê-lo para cá?
MAYSA – Porque... Bem, primeiro porque eu queria que ele desse valor a si mesmo antes de saber o valor que se dá aqui ao nome Matarazzo. Segundo, porque estávamos lá na época em que ele começou a estudar, e não acho bom mudar o estilo de formação. E terceiro, não sei, pode ser covardia minha, mas quero que ele tenha mais tempo para ser criança. Eu não tive muito. Saí do colégio interno, de freiras, praticamente para casar.
TV – Você se casou com André Matarazzo por causa de alguma pressão?
MAYSA – Eu me casei justamente porque disseram que não devia casar com um homem dezoito anos mais velho do que eu. Foi como se dissessem: “case!”
TV – Foi um período muito ruim?
MAYSA – Não preciso dizer muito: casei e me separei. Não consigo me lembrar direito do dia-a-dia. A visão que tenho hoje de André é... A de um pai, de uma pessoa completamente inconsciente  passando pela vida. Que André me perdoe, e Jayminho também, mas não consigo liga-lo a condição de pai do meu filho. André não deixou nada, não. Realmente nada. E é engraçado, eu o vejo como um pai mas ele talvez fosse mais criança do que eu, que tinha dezessete anos apenas. E com dezoito já era mãe.



TV – Como é que você vê o mercado artístico atualmente?
MAYSA – O que há é um negócio muito estranho, todo mundo pisando no mesmo palco, sabe como é? Deveria haver vários palcos. Os artistas de categoria estão precisando se afastar, porque os falsos valores estão atrapalhando. Hoje em dia a máquina funciona mais do que o valor.
TV – Vamos dar nome aos bois?
Nomes aos bois? Poderia... Mas não deveria. Não é por covardia, não. É que acho que determinadas pessoas tem muito peso – e eu sou uma delas. A gente não tem o direito de fazer mal aos outros. Eu ataco as pessoas que são da minha altura e que podem responder com segurança. Os mais fracos, não.
TV – E quem é que está à sua altura, então?
MAYSA – Bom, quando eu digo à minha altura, quero dizer, com valor, quero me referir àqueles que estão desempregados. Desempregados no sentido total da palavra.
TV – Mas quem são?
MAYSA – Eu diria Bethânia, eu diria... Elis – todos os que largaram a televisão. Todos os que deveriam ser donos da televisão não estão lá, porque tem outra gente imposta pela máquina que está ganhando dinheiro com isso.
TV – Quer dizer que você acha a televisão o mais importante para o artista?
MAYSA – Claro. É o que mostra mais. Canecão também é importante, mas a televisão é o meio de levar o artista ao Canecão.
TV – E o Ibope, importa ou não?
MAYSA – Ibope? O que é isso? Palavrão?
TV – Você tem planos de voltar a ter um programa?
MAYSA – Não estou pensando nisso. Se pensar, chamo o Carlos Alberto, que, para mim, continua sendo o melhor produtor de TV.
TV- Como é que você vê a volta de Chico Buarque de Hollanda?
MAYSA – Eu... acho o Chico um bom poeta. Um lindo garoto de olhos verdes. Gostaria que meu filho fosse bonito como ele.
TV – E essa partida dos compositores para o exterior?
MAYSA – Um sonho. Me diz quem é que está funcionando lá fora? Saem de uma máquina mal feita para outra melhorada, mas não adianta. Caetano Veloso ter ido embora considero uma perda enorme. Edu Lobo também. Acho que é só.
TV – E Gil?
MAYSA – Gil, eu tenho impressão de que tem muita vontade de se mostrar. Caetano é mais minha pele, sabe como é?
TV – Você foi a primeira fora da Jovem Guarda a cantar “Se Você Pensa”, não é? O que a levou a isso?
MAYSA – Fui sim, fui a primeira. O que me levou a cantá-la? É a tal história: aquela vontade de atacar, de agredir, e a música realmente é uma graça. Mas não consegui dar uma interpretação diferente da de Roberto Carlos. Ele marcou muito. Ninguém deu o recado melhor do que ele. Isso é um negócio muito sério – por exemplo, se eu quisesse cantar uma música do Caetano, das que já foram feitas, não poderia nunca, porque já estão bem dados os recados. Agora, se ele mandasse uma música para mim, aí talvez eu pudesse criar a minha interpretação.
TV – Você gostaria, então, que Caetano lhe mandasse uma música?



MAYSA – Puxa, adoraria!
TV – Mas no seu contrato com a Philips há uma cláusula que obriga você a compor, não é?
MAYSA – Não me obriga, me incentiva. E já recomecei. Só estou fazendo letras, porque ainda me acho sem base para fazer melodias. Naquela minha fase de compor muito, eu enganava. Agora não dá mais para enganar. Tem-se que estudar muito para ser compositor. Hoje já vejo isso claro. Estou querendo nascer de novo.
TV – Devido a que?
MAYSA – Não sei, prefiro não saber. Se de repente eu descobrir e não gostar, vai ser horrível.
TV – Ronaldo Bôscoli foi muito importante na sua vida sentimental e profissional. Agora você está voltando a trabalhar com ele. Por quê?
MAYSA – Miéle também é meu produtor, sabiam? Por que perguntar só de Ronaldo?
TV – Porque Ronaldo sempre foi mais ligado a você. Bossa nova, “Barquinho”, Miéle naquela época não estava muito nessa.
MAYSA – Olha, não vamos tirar assunto de onde não tem. Acho a dupla Miéle-Bôscoli a mais importante do Brasil e de muitos outros lugares. Ronaldo realmente ajudou a calçar minha carreira. Ele e Miéle são do maior bom gosto, são os pais do show no Brasil. Além disso tenho amizade de muitos anos com Ronaldo, estou ligada a ele e a tudo o que o cerca – sua família, sua irmã Lila que é como minha irmã.
TV – E Elis?
MAYSA – O que tem? Elis é uma ótima cantora.
TV – Houve uma época em que você a chamava de “coitada”.
MAYSA – Acontece o seguinte – quando eu disse que Elis era uma coitada, é porque eu conhecia Ronaldo Bôscoli. Sei que tenho preparo físico para aguentar muita agressão de Ronaldo, porque agrido também. Mas eu não conhecia Elis, não sabia se ela tinha esse preparo físico. Já vi que tem. Não estou dizendo isso para limpar a barra, não.
TV – Você foi ver o show dela no Canecão?
MAYSA – Fui. Eu acho de uma tremenda coragem o que ela está fazendo. Eu teria um certo medo de fazê-lo. Por causa dos arranjos, inclusive, que estão muito altos. Mas o show é muito bem feito.
TV – Há tempos correu o boato de que você estava esperando bebê.
MAYSA – Estava mesmo. De três meses. Mas perdi. Não foi a primeira vez. Estou doidinha pra ter outro filho. Essa é uma das razões porque pretendo parar de cantar. Quero me organizar para ter meu filho.
TV – Como é que você parou de beber?
MAYSA – Estive internada seis meses numa clínica. Se não parasse, morria dali a três meses. E a bebida não estava me dando nada. Então parei. Mas hoje, gostaria de ter o direito de beber de vez em quando. Direito que não me dou, porque para beber um uísque quero beber três, e se beber três tenho que beber todos.
TV – Por que você sumiu do programa do Flávio Cavalcanti?
MAYSA – É uma longa história. Eu estava no exterior e tinha dito que só voltava se fosse convidada para trabalhar. Encontrei o Flávio em Lisboa e ele me convidou. Eu não sabia o que era o programa. Me arrependo de muito poucas coisas na minha vida: uma delas é ter participado do júri do Flávio. Julgar os outros é furado, não dá pé. Destrói muito mais do que constrói. Bernadete, uma moça que trabalhou comigo, saiu lá, da “A Grande Chance”. Os podres que ela contou, a maneira como se sentiu arrasada por não ter podido chegar a final, são coisas assim de meter medo.
TV – O que você vê na televisão?
MAYSA – Chacrinha. Ele é mesmo genial. E um outro programa além do dele.
TV – Maior cantor ou cantora do Brasil?
MAYSA – Milton Nascimento. É demais.
TV – De que é que você mais está precisando agora?
MAYSA – De raízes. Criar raízes, ter a minha casa, a minha corriola. Sentir que as pessoas precisam de mim, que sou querida, mesmo na forma de agressão. De fazer um tremendo show no Teatro da Praia. E de Miguel junto de mim, naturalmente, que Miguel me faz um bem danado.  

(Reportagem publicada originalmente no número 383 da revista Intervalo em 1970.)