24 de junho de 2013

Imprensa: Manuel Bandeira: um poema e sua história - Revista A Cigarra (1961)


Manuel Bandeira: um poema e sua história 


PRINCIPIEI a gostar de Maysa primeiro pelo seu nome. Maysa! Parece um amanhecer. Depois... eu tenho no meu quarto de dormir cinco instrumentos a que muita gente tem horror porque não sabe que eles são como a antiga navalha de barbear: utilíssimos e inofensivos quando só usados há seu tempo e hora: telefone, à direita de minha cama; rádiozinho, à esquerda; televisor, em frente; vitrola, perto da janela, refrigerador, na sala contígua (de sorte que nela faz frio, mas no quarto tenho ar fresco e seco e não ouço o ruído da máquina). Considero-os cinco amigos do peito, só que o televisor e o rádio uma vez por outra me pregam uma falseta.
Pois é, eu ouvia falar muito de Maysa, de sua voz, de sua vida, de suas excentricidades, e, uma noite, à hora do programa dela, liguei o televisor e disse comigo: vamos ver como é que é. Apareceu Maysa de costas, depois de repente se virou, com cara de pantera acuada e desfechou um “boa noite”, que dava a impressão de ter saído não da garganta, mas do fundo do estômago. Depois vieram as visagens, muitas visagens. Por fim, o canto. A voz de Maysa não tem nada de extraordinário. Diz mais do que canta, e a sua dicção também nada tem de extraordinário. Para ser inteiramente franco, não gostei muito não. Todavia, terminado o programa, desligado o televisor, quem disse que eu podia esquecer os olhos e a boca de Maysa? Eles me perseguiam, era tão pungente a expressão deles, expressão de amargura, a mais intensa que eu já tinha visto na vida ou na arte! Na semana seguinte estava eu colado ao televisor, à espera do programa de Maysa. E os olhos e a boca de Maysa continuavam a me perseguir fora do programa. Ora, isso não estava dentro do meu programa. Resolvi, então, aplicar à obsessão o golpe da catarse. O artista leva esta vantagem sobre o não-artista: pode livrar-se das obsessões, reduzindo-as a poema, estátua, pintura ou desenho. Vou fazer um poema sobre Maysa, disse com bravura, e comecei a assuntar. Pretendia ser absolutamente sincero, nada de galanteio, de orquídeas brancas, de marrons glacês. No meio da coisa, considerei que Maysa afinal é mulher, que Maysa podia magoar-se (ela já tem sido vítima de tanto cafajeste)... desisti do poema.
Mas o poema é que não desistia de vir a furo. Um dia veio. Eu tinha que bater a minha crônica para o jornal, não achava assunto que me atraísse, só se falava, então, em Brasília, de súbito me deu o estalo, principiei a teclar na Hermes Baby:

Neste momento a mão é para Brasília
(Todos os caminhos levam a Brasília)
Mas eu gosto de tumultuar o trânsito
Vou louvacionar Maysa!

Três quartos de hora depois o poema estava concluído.
Procedi, então, como costumo fazer quando fico satisfeito com o meu trabalho: entrei a narcisar-me nele. Confesso a minha fraqueza: gosto de lamber a minha cria, se ela me sai bonitinha. O narcisamento consiste em reler a versalhada dez, vinte, trinta vezes. Não há defeito, por pequeno que seja, que resista a essa prova.
Posteriormente, considerando que as quatro linhas iniciais soavam demasiado a crônica, suprimi-as, por caducas, da versão final e definitiva do poema.
Não sei se Maysa gostou ou não da louvação. Vinicius me disse que ela gostou.
Maysa não me deu bola.



MAÍSA

Um dia pensei um poema para Maísa
“Maísa não é isso
Maísa não é aquilo
Como é então que Maísa me comove e me sacode me buleversa me hipnotiza?

Muito simplesmente
Maísa não é isso mas Maísa tem aquilo
Maísa não é aquilo mas Maísa tem isto
Os olhos de Maísa são dois não sei o que dois não sei como diga dois oceanos não-pacíficos.

A boca de Maísa é isto isso e aquilo
Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?
Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão
A boca de Maysa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos de Maísa podem ser sérios e como a boca de Maysa pode ser amarga!

Boca da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável)”
Cacei imagens delirantes
Maísa podia não gostar.
Cassei o poema.

Maísa reapareceu depois de longa ausência
Maísa emagreceu
Está melhor assim?
Nem melhor nem pior
Maísa não é um corpo
Maísa são dois olhos e uma boca

Essa é a Maísa da televisão
A Maísa que canta
A outra eu não conheço
Não conheço de todo

Mas mando um beijo para ela.


Poema originalmente publicado na coluna de Manuel Bandeira no Jornal do Brasil, em 1960.

(Reportagem publicada originalmente na revista A CIGARRA, em 1961. Agradecimentos ao leitor Edson Luiz Mendes que tornou possível a publicação desta matéria. Muito obrigado!)

10 de junho de 2013

Imprensa: Maysa acha os americanos ingênuos - Radiolândia (05/1961)


Maysa acha os americanos ingênuos


Esta entrevista foi realizada com Maysa noite dessas no apartamento 1.303 do Plaza Hotel, onde a estrela se encontrava hospedada. Informal e simples, lacônica por vezes, mas categórica sempre, deixando de lado, por completo, os chavões e as frases feitas, a criadora de “Ouça”, “Mundo Vazio”, “Suas Mãos”, “Escuta Noel” e tantos outros sucessos em disco foi respondendo, uma a uma, às indagações que lhe dirigimos, sem titubear, sem hesitar um instante sequer. Vestia uma blusa de malha e uma saia escura. Ao colo, seu cachorrinho de estimação. Os cabelos revoltos, caindo em mechas sobre a testa, davam-lhe um toque de encantadora negligência, que a ausência de “baton”, “rouge”, ou rimmel” tão bem complementava.
Fitou-nos, com seus olhos marcados a lápis. Seu olhar nos disse que podíamos começar.

“NÃO ME CONHEÇO”

-         Que acha de si mesma? – iniciamos.
-         Já cheguei à conclusão de que não me conheço. Não sei ainda, exatamente, quem sou, quem fui, quem serei. Vivo procurando a mim mesma, certa, embora, de que não me encontrarei nunca, nem no espaço nem no tempo. Sou, entretanto, a mulher que se busca.
-         Considera-se realizada como criatura, artista e mulher?
-         Realizei-me plenamente como criatura humana, como matéria orgânica e sensitiva. Não o consegui, todavia, como artista e mulher. Pensando bem, pouco ou nada realizei na vida, pois cada dia que passa mais me convenço de que me falta tudo para realizar aquilo a que me propus, quando iniciei a jornada da existência. Existência? Nem sei mesmo, ao certo, se vivo ou vegeto...
-         Considera-se uma mulher de grande personalidade?
-         Não, de personalidade grande. Não sei se para bem ou para mal. Costumo dizer o que penso, porque, geralmente, penso o que digo, aproveitando o “slogan” de um jornal.
-         A Maysa-mãe é condescendente ou rigorosa?
-         Nem uma coisa nem outra: compreensiva. Meu filhinho (que se encontra em São Paulo, residindo em companhia de meus pais) não conheceu, até agora, de minha parte, tolerância ou tirania. Dispenso-lhe a compreensão de vida aos meninos de sua idade, pois não desconheço que a benevolência excessiva é tão perigosa quanto o rigor em demasia.
-         Qual é sua religião? E cor política?
-         Tenho, por princípio, não responder a perguntas que versem sobre questões religiosas ou políticas, uma vez que são assuntos extremamente controversos. Vou abrir uma exceção, certa de que vocês não tocaram mais nestes temas. A religião que professo, defino-a numa palavra – cristã. Quanto à minha cor política, é... meia-esquerda.
E deu um sorriso maroto. Espremendo mais ainda os olhos rasgados.

“BEBO PORQUE QUERO”

-         Maysa, porque você bebe? – perguntamos, de chofre. Pausa. Lentamente o sorriso se desfez. E a resposta veio, em tom que não admitia réplica:
-         Bebo, por vários motivos: em primeiro lugar, porque quero. Em segundo, porque sinto vontade. Em terceiro, porque tenho dinheiro para pagá-la. Finalmente, porque bebendo, eu me torno menos insuportável aos outros e, ao mesmo tempo, consigo suportar a presença dos insuportáveis, coisa que seria difícil obter fora do estado etílico.
-         E que faz quando, mesmo estando em multidão, sente-se só?
-         Bebo.
Aproveitamos a embalagem:
-         A noite carioca lhe agrada? E a paulista? E a nova-iorquina?
-         Quer saber de uma coisa? Minhas noites não têm sobrenome.

“FRACASSEI NO AMOR”

-         Quantas vezes você se viu frustrada no amor, Maysa?
-         Tantas quanto tentei. Meu fracasso no amor foi qualquer coisa de cruel, total, inumano, exasperante, irremediável. Como sigo, entretanto, a teoria filosófica que erige a fatalidade como supremo dogma, conformei-me com os meus contínuos insucessos nesse terreno, cujos encantos, ainda, a bem dizer, desconheço. Resigno-me a amar sem ser amada ou ser amada sem amar, ou ainda: nem amar, nem ser amada – que considero a mais simples para uma vida vegetativa e sem pretensões. Diga-se de passagem que não creio já ter sido amada verdadeiramente, levando-se em conta o que eu entendo por “amar”, em toda complexa acepção da palavra.
-         Julga-se feliz atualmente? Nada lhe falta?
-         Sim, feliz. Nada me falta, exceto encontrar-me, como já disse acima. Se isto acontecer, – o que não acredito – então, sim, terei atingido a felicidade verdadeira, completa, insofismável.
-         Acha o ciúme um sentimento próprio dos medíocres?
-         Ah! Então é por isso que eu sou tão medíocre...

“STATES”

Como não poderia deixar de ser, tocamos no assunto “States”. Disse-nos Maysa que ficou verdadeiramente encantada com o adiantado estágio de civilização que já atingiu o povo daquele país irmão. Suas magnificentes construções, – maravilhas arquitetônicas – suas pontes, vida noturna, indústrias, enfim, todas as inúmeras formas de resolver os problemas da vida quotidiana pela maneira mais prática e eficiente – a deslumbraram. Gostaríamos, entretanto, de saber o que, dentre aquela imensidão de maravilhas que existe nos Estados Unidos, mais entusiasmara a artista brasileira. Por isso, fizemos a pergunta:
-         O que mais a impressionou nos “States”?
A resposta de Maysa veio pronta.
-         A ingenuidade dos americanos.


(Reportagem publicada originalmente na RADIOLÂNDIA - Nº352, segunda quinzena de maio de 1961. Agradecimentos ao leitor Edson Luiz Mendes que tornou possível a publicação desta matéria. Muito obrigado!)

6 de junho de 2013

Especial: 77 anos de Maysa


77 anos de Maysa


"Minha infância foi muito alegre. Engraçado... Eu preferia brincar com os meninos, não com as meninas. Às vezes entrava em brigas feias, batia até neles. Mas, cantar, cantei sempre. Ainda menina, me lembro, ganhei um gravador de presente, todo vermelho. Olhava no espelho e me maquilava igual à Marilyn Monroe. Só cantava música americana. Mais tarde fugi de casa e fui gravar o que seria o meu primeiro disco. Fui junto com o Baby, famoso guitarrista do Oásis, uma boate paulista que era o lugar da moda nos anos 50. Gravei esse disco em 1951. De um lado, uma música americana, do outro, 'Se Eu Morrer Amanhã de Manhã'. Aí é que veio o convite do Roberto Corte-Real para gravar meu primeiro LP."


“Maysa, nome incomum, é um cripto de Maria Luísa enfeitado com um Y. O nome me foi dado por minha mãe em homenagem a uma grande amiga.  Todo mundo pensa que eu sou paulista. Vivi muitos anos em São Paulo, estudei no Sacré Coeur de Marie de São Paulo, meus mais moram lá, mas eu nasci em Botafogo, à Rua Visconde e Silva. Numa casa que ficava em frente à residência de Simoens da Silva. Eu acho que estive 10 anos interna estudando. Repeti a 2ª série para que me tirassem. E agora sonho quase toda noite que vou voltar para o colégio interno.”


Eu me casei muito moça: com 17 anos. Ele era 18 anos mais velho que eu, para mim muito mais pai do que marido. Não levei propriamente vida de sociedade, mas me sentia muito tolhida no meio daquela gente toda. Acabava tendo de jogar buraco, pif-paf, ir a boates... o que eu gostava era de cantar."


"Atenção, que o nome dele é Jayme, com y. É o meu maior amigo. Aliás, o único. Só que ele ainda não se deu conta disso. Está com 19 anos, de casamento marcado e tudo. Mas o melhor é que ele vai me fazer avó. Quero curtir esse neto como se fosse um outro filho. Meu neto será o filho que eu mesma não posso ter. Agora, quando as pessoas me procuram para elogios, para dizer que gostam do meu show, que estou muito bonita, essas coisas, digo sempre que é por causa do Jayme, que é para ele que estou cantando agora. É para o Jayme que eu dedico 'Dindi', por exemplo. Todo mundo tem o seu Dindi; o meu é o Jayme."



" Não procuro julgar ninguém. Esse mesmo respeito que exijo em relação a mim devolvo às pessoas. Não existe ninguém ruim. Que cada um faça o que entender e do que gostar, não importa o que. Perdoe o lugar-comum, mas nada tão certo como o princípio de que a liberdade de cada um termina quando começa a do outro. Por isso tudo é válido, desde que sincero e autêntico. Mas também nisso tudo não cedo num ponto. É quanto a burrice na sua totalidade. Esses de forma alguma deveriam existir. A pessoa que apela para a burrice não tem direito de viver. Essa, sim, é a maior e pior desgraça da humanidade."


"Se minhas músicas representam o estado da minha alma, até isso é verdade. Vivo-as todas as vezes que as interpreto. Se sou excessivamente romântica, não vejo desdouro nenhum nessa afirmativa. A vida sem amor é uma queda no vácuo".


"Quando eu era casada com o Matarazzo, eu nunca comunguei da cartilha dele, não, entende? Na minha casa, eu sempre recebi quem eu quis, sempre fiz o que quis, quando comecei a cantar recebia em casa todo o mundo que me dava vontade, quer dizer que nunca participei da vida de sociedade."


 "Sou assim: minha vocação explodiu dentro de mim como um vulcão. Por isso me considero inconsequente, incoerente, leviana, matusquela. Falam como se tudo isso pudesse mesmo de longe atingir os meus sofrimentos. Um dia, e na esperança desse dia, muitos dirão que 'afinal de contas não sou má pessoa'."


"Minha carreira artística é uma decorrência da minha vida. A minha vida é uma coisa muito importante. Deu muito pras pessoas, deu muito pra mim, talvez mais pras pessoas que pra mim. Eu somei muita coisa. Ensinei muita coisa pras pessoas, só não ensinei pra mim mesma."


Feliz aniversário Maysa Figueira Monjardim!

(6 de junho de 1936 - 22 de janeiro de 1977)

Não, não voltaria atrás em nada. Faria exatamente tudo igual. Se pudesse acrescentaria mais alguma coisa, igualzinha."

- Maysa