22 de janeiro de 2012

Especial: 35 anos sem Maysa.


35 anos sem Maysa




É madrugada do dia 22 de janeiro de 2012. Estou escrevendo sobre Maysa, e não há um minuto sequer que eu não pense nela. Para ser sincero com vocês, estou cansado. Me dou conta de que se passaram 35 anos, mas ainda não consigo crer nisso. Parece que a ficha ainda não caiu mesmo não. São tantos anos e Maysa ainda se faz fortemente presente através de canções, letras, poemas. É como um daqueles cometas que só visitam a Terra de muitos em muitos anos. Já faz anos que eu me encontro aqui neste mesmo dia e eu nunca sei o que dizer. E eu fico me perguntando, "o que eu devo dizer?". Este ano eu decidi falar pouco, deixar que vocês pensem mais em Maysa e menos no que eu dizer. 
A mais triste das tristezas é a saudade. Saudade de alguém que partiu, saudade de alguém que não vai mais voltar. Maysa partiu pra não mais voltar. Mas permanece viva nos poemas que escreveu, nas canções que gravou, nas fotografias que tirou. Ninguém esquece uma mulher como Maysa. Uma tão simbólica como esta representa principalmente com a celebração do trabalho magnífico de uma cantora e da vida de uma mulher tão grande que se tornou uma própria lição de vida.
Na edição da Revista Manchete de 5 de fevereiro de 1977, que trazia na capa a reportagem sobre a morte de Maysa, o jornalista, compositor e ex-namorado de Maysa Ronaldo Bôscoli escreveu um longo texto dedicado à cantora. Um brilhante perfil de Maysa cheio de significado e sinceridade, que nos faz lembrar e reconhecer melhor uma Maysa maravilhosa que por algumas razões acaba ficando distante da nossa imagem dela. 




Ave Maysa Cheia de Graça

Em 1960, a Barra da Tijuca ignorava o boom imobiliário e permitia muitas travessuras de Maysa – a primeira pessoa famosa a procurar a Barra como refúgio. Num dos muitos restaurantes típicos fincados em palafitas sobre a água volúvel da lagoa, fui apresentado a Maysa por Augusto Mello Pinto. Eu, Gugu e duas namoradinhas brincávamos com casquinhas de siri quando vimos baixar um helicóptero. Baixar perigosamente sobre nossas cabeças. Naturalmente uma Barra deserta permitia a Maysa aquelas evoluções arriscadas. Ela própria ao lado de um empresário americano (que mais tarde a levaria para cantar no Blue Angel de Nova York) pilotava (eu disse pilotava?) um oscilante pássaro. O americano que sorria amarelo sentiu que, se não tomasse o comando, o desastre seria fatal. O vento do helicóptero, já muito baixo, espalhava a farofa dos menos avisados. Dobrava toalhas de papel, virava frágeis cálices de drinques. Levantava sapé do telhado – e com isso ia demolindo o típico restaurante. Gugu espetou o ar e disse “Aquela é a Maysa. Estamos feitos. Eu conheço Maysa muito bem. Vamos mostrar nossas composições. Ela gosta do nosso estilo. Vamos lá...”
As pessoas muito afoitas, caso de Gugu, Maysa respondia com uma defesa bastante agressiva. Maysa estrategicamente custou a lembrar de onde conhecia o Augusto Mello Pinto, tirou a mesa com um olhar superior e foi ao bar buscar às bebidas que faltavam para sua festinha. Um almoço informal. Como Maysa. Já a bordo, sob o ronco do helicóptero, Maysa sugeriu vagamente: “Apareçam por lá”. Disse o nome de uma rua meio ininteligível e concluiu mais alto: “Todos sabem onde mora a Maysa. É ali...” Gugu descobriria, certamente descobriria. Ninguém mais desembaraçado que ele. Ninguém mais embaraçado que eu. Foi assim que conheci Maysa. Ela desceu do céu. Lugar, admitamos, pouco provável.
Durante o almoço, Maysa sabia que estava se esboçando um movimento chamado Bossa Nova. Diminuiu a intensidade dos drinques e foi se sentar a meu lado, debaixo de uma mesa. Conversamos muito. Falamos do seu mundo muito mais que do meu. Trabalhei com elementos que me pertenciam – alguns até sem o perceber – e ficamos amigos. Ela pediu que eu reparasse falhas no seu programa de televisão. Com o olho que eu tinha: o de repórter. Depois fomos localizados e a conversa continuou no plural. Gugu – sem lenço e sem documentos – quer dizer, sem piano ou violão – mostrou, ao toque de uma caixa de fósforos, algumas de nossas composições. Maysa ria da minha timidez. Eu caitituando as músicas, completamente semi-tonado. “Você não tem outro parceiro?” falei em Carlos Lyra. A festa acabou. No dia seguinte éramos poucos em casa de Maysa. Carlinhos Lyra – menino de violão desenvolto – deixou Maysa pensativa (“e a lua brilha branca já cansada, não és mais a namorada, não sou mais o teu cantor”). Maysa disse, firmemente: “Essa eu gravo. Foi feita pra mim.” Marcamos então o primeiro bolo. Ela iria viajar para a Argentina, depois ficaria um mês em São Paulo e, na volta, desdobraria o papel onde escrevi meu telefone, o de Carlos Lyra, o de nossas mães, o do meu trabalho. Todos. Afinal eu queria uma oportunidade para mostrar, ver gravadas as minhas composições. Nada feito, muitos drinques, muitas noites nos separaram. Paralelamente, a Bossa Nova criava forças. Crescia como fermento. Os shows que Maysa me prometera ficaram ali no Beco das Garrafas. Conheci meu outro braço (esquerdo, sou canhoto): Miele. E o movimento da Bossa Nova  cresceu, até ao status de Maysa. Nós, ali no artesanato dos pocket show. Eu dividindo meu sonho entre MANCHETE e o Beco das Garrafas. Nesta época, virei folclore dos Bloch, sempre paciente para com minhas omissões. Na marca do pênalti eu aparecia com uma capa salvadora e era elogiado pelo próprio Adolpho. Isso quando mulher bonita vendia revista. Fará muito tempo?
Um dia, antes de um dos nossos shows, Alberico Campana correu em nossa direção. Lívido e quase sem voz: “Maysa esta chegando.” De fato, Maysa chegou. Assistiu ao show, nos chamou a mim e Miele. “Quero trabalhar com vocês. Vocês serão meus produtores.” Miele esquivou-se. Tinha contrato com a TV Continental. Minha arma para entrar num estúdio de TV e dirigir Maysa tinha pouco alcance. Pouca prática, alguma sensibilidade à força que move os jovens: uma vontade enorme de inovar. Claro que fui muito mal recebido. Para os da casa eu era mais “um capricho da estrela”. “Quem é esse cara? Diz um troço dele aí?” e realmente eu não possuía qualquer referência. Mas sabia o que queria. Na época, um homem se afinou com meu diálogo: Nilton Travesso. Eu sugeria minhas ideias e Nilton transformava-as as em realidade sempre que possível. Nilton ensinou-me a bater o primeiro script (e Miele me ensina até hoje). Na TV Record de São Paulo fui audaciosamente lançado por Maysa. Sabem quem acompanhou Maysa em muitos shows? João Gilberto. O violão! Poucos sacavam o faro musical de Maysa. Ela gostava principalmente das coisas que não estavam ao seu alcance. Comprou muitos discos de Bossa Nova e, mesmo não sendo talhada para o estilo, resolveu investir nele. De corpo e prestígio.
As águas rolaram. Nossos afluentes trilharam outros caminhos. Até que o destino devolveu Maysa ao Beco. Aí a Bossa Nova estava com toda força. João Gilberto já era emancipado. Tom/Vinicius produziam muito naquele estilo que eu embalava como um primeiro filho. Alberico, sem espanto, disse: “Maysa telefonou e vem assistir ao show. Tomara que ela não atrase. Não temos lugar nem para uma mosca.” Claro que encontraram lugar para Maysa, que já conhecia nosso repertório e estava apaixonada pela Bossa Nova – pela linha romântica da Bossa Nova. Ao final do show, fomos contratados a peso de ouro. Maysa – olha o faro da moça – escolheu para seus músicos ilustres jovens desconhecidos: Luiz Carlos Vinhas, Roberto Menescal, Luiz Eça, Bebeto e Hélcio Milito (que mais tarde, bem mais tarde, formariam o Tamba Trio). E entregou-me este show para produzir e dirigir. Um espetáculo internacional: Buenos Aires, King’s Club. Quando aqueles cinco meninos chegaram para o ensaio, Alfredo, o dono da casa, exclamou surpreso: “Maysa está tonta!” naturalmente que ela mesclou algumas de suas canções (com arranjos totalmente novos) às tradicionais, às músicas da Nueva Ola (assim eles começaram a conhecer a Bossa Nova no mundo). Aplausos de praxe para o repertório de Maysa e aplausos muito fortes para as músicas de Bossa Nova que ela cantou. Claro que o público do King’s foi se modificando. Sabedores de que Maysa estava lançando algo de novo, para lá partiram Gato Barbieri, Astor Piazzola (dois ilustres desconhecidos na época) e com eles a nata dos renovadores da música Argentina – inclusive um rapaz chamado Sergio Mianovich que mais tarde comporia canções para Ella Fitzgerald gravar. Numa das festas em casa de Sergio, ouvimos em primeira mão um samba que ele compôs para Dick Farney e Mistery, mais tarde registrado pela própria Ella Fitzgerald. Nesta mesma festa ouvi duas revelações que definem Maysa. Teríamos que partir para o Uruguai na semana seguinte (nossa temporada fora prorrogada duas vezes no King’s) e não poderíamos levar o grupo inteiro. Porque todo ele era regiamente pago pelo bolso de Maysa...a outra revelação: eu seria seu produtor. Salário triplicado em relação ao que eu ganhava em MANCHETE...
Eu jamais deveria ter aceito esta proposta. Feita mais com o coração do que a razão. E dessa mistura de vozes nasceu um romance. Forte, violento, sincero. Enquanto durou. Demoli minha vida pessoal e assumi. Maysa mergulhando em mim mergulhava na Bossa Nova. Ela foi a primeira cantora a gravar “O Barquinho” sob o descrédito de muitos. Não só “O Barquinho”, mas seis outras canções, todas de minha autoria (e Carlos Lyra e Menescal). Sentindo a vontade de Maysa e as luzes de minha vocação larguei tudo. Ela também. E fomos morar em Vitória. Nós e Menescal, Vinhas, Bebeto, Hélcio e Luiz Eça. Realizamos muitos shows, produzi diversos programas de televisão e ambos começamos a entender que houvera uma certa mistura de estações – ou de sentimentos, se assim acharem melhor. Maysa era como um jogo de pôquer. Você deve saber entrar e saber sair. Cartas ao peito. Olhar atento. Foi assim que saí da vida de Maysa. De madrugada. Ela dormia. Em  Vitória. Meu fusca já estava comendo a estrada de volta ao Rio. Daí pra frente acompanhei Maysa a distância. Torcia muito por ela. Sempre acreditei na sua recuperação. Maysa era maior que ela. E quando não se cabia, criava dimensões próprias. De um dos seus grilhões ela conseguiu se libertar. Ultimamente, Maysa já não era mais um mito e conquistou o direito e ir e vir e ir e vir e ir...cometeu sua última audácia quando enfrentou o palco do Canecão.
Naquela noite assisti a uma autêntica tourada. Maysa, fina como um toureiro enfrentou aquela platéia imensa. O riso como arma, a emoção como defesa. Ao final, entre flores e aplausos, saiu da arena arrastando vistosa capa de vison. Não, não fui ao camarim de Maysa. Era uma vitória só dela. No script de sua atribulada vida estava inserido Miguel Azanza, um bonito espanhol com quem Maysa se casara depois de alguns anos pela Espanha. Daí pra frente acompanhei Maysa a distância. Cobrei de Mário Priolli – de quem me fiz amigo alguns anos depois – uma placa para Maysa. À porta do Canecão. Maysa foi o “abre alas” da hoje maior casa de espetáculos do Brasil. Maysa terá sua placa no Canecão.
Não, não fui ao enterro de Maysa. Para não conferir mentiras. Abri um champanha e ao lado de minha mulher grávida prestei a homenagem que melhor me parecia. Mas fiquei sabendo que Maysa ia gravar um disco com Lúcio Alves, que ela iria realizar uma excursão ao México, e que existem certas coisas que não se explicam. Maysa jamais participará do programa que escrevo ao lado de Ivã Lessa: Sandra & Miele. No derradeiro script, movido não sei porque, criei um quadro de gente que fez música de dor de cotovelo. E confessasse isso abertamente. Não duas vezes e pedi a escalação de Maysa para fechar o quadro cantando “Atrás da Porta” (Chico Buarque e Francis Hime). Eu não estava no estúdio, quinta-feira dia 20. Maysa foi até lá e – brincando com Miele – sugeriu cantar “Tema de Simone”, música de sua autoria criada para o personagem que viveu na novela O Cafona. Miele concordou. Então, novos arranjos, e Maysa viria segunda-feira para gravar o quadro. Passou a melodia para o maestro e disse que segunda-feira voltaria. Dia seguinte, Maysa saiu do ar. Literalmente. Seu carro voava. Maysa tinha um compromisso inadiável com um sonho: Maricá. Estava só. Creio que porque as pessoas maiores quando partem para grandes viagens não gostam, não querem testemunhas. Assim aconteceu com Dolores Duran.
Curioso. Maysa morreu tantas vezes. Seria impossível estranhar sua morte. Mas ainda hoje me encontro pasmo diante do fato. Dito em letras, em notícias e repetido por mim diante de um cubo vazio. Sua ausência.

Ronaldo Bôscoli




Um vazio que ficou pra sempre.
Uma emoção escancarada na cara.
Um lamento que não tem resposta.
Um grito que ecoou no vácuo.
Uma paixão que acabou sem adeus.
Um coração deixado no asfalto.
Uma música que não parou de tocar.
Um sorriso gravado na memória.
Uma flor que não desabrochou na primavera.
Um verão triste.
Uma cicatriz aberta.
Uma lágrima jorrada num mar revolto.
Não é Maysa.
É o desalento profundo da tua ausência gravada no meu peito.

Vitor Dirami




"Seu poeta, faça um verso pro meu canto cuja a música é meu pranto e a harmonia a tristeza. Um verso grande que me faça companhia nas longas noites frias, como são todas as minhas."



Maysa Figueira Monjardim
(06/06/1936 + 22/01/1977)


PS: (As imagens usadas nesta postagem são GIFs. Para visualizar as animações clique nelas.)