“Sofro uma barbaridade antes de entrar em cena”
Maysa – eis o nome de uma mulher-gata muito bela, dona de
uma voz rara e de dons artísticos também raros. É menos felina do que parece
nos retratos e muito mais dada e simpática. Mas sobretudo Maysa – mulher
sofrida e corajosa que encara os próprios erros – é um símbolo de ressureição.
Fortemente deprimida quando deixou de cantar, não se esperava mais que tivesse
força suficiente para refazer sua vida. E eis que surge uma mulher mais do que
bonita, e mais forte do que antes. Reconstruir-se torna-se a mais importante
palavra entre todas. Quem já se ergueu várias vezes das cinzas, sabe como é, ao
mesmo tempo difícil e possível a própria reconstrução. Este é um diálogo
antideclínio: é cheio de perspectivas.
- Maysa, nesse seu novo apogeu artístico você mudou em
quê?
- Não acredito que tenha mudado, tanto é assim que meu
repertório é mais ou menos o mesmo, apenas mais moderno. Isso de mudar a fase
inicial talvez seja uma traição, uma ingratidão com aquilo que nos lançou, e
mesmo quanto ao público daquela época. O que absolutamente não proíbe que eu
mude, que eu vá adiante.
- Seu apogeu também é de vida: o que fez você para sair
da profunda depressão em que havia caído?
- Olhe, eu acredito que isso tenha sido em parte por eu ter
me afastado desse ambiente daqui, ter-me encontrado um pouco comigo mesma, ter
achado o diálogo, entende? Eu acho que a solidão que procurei foi muito
importante para esse encontro com a vida.
- Você é uma criatura profunda, e isso lhe deve trazer
muitos dissabores. Como é que você se liberta deles?
- Clarice, eu não me liberto. Cada vez procuro me aprofundar
mais, e especialmente, no problema alheio, olhando para baixo para dar mais
valor às coisas boas da vida.
- Você tem muitos inimigos?
- Que eu saiba, não. Embora tenha aprendido na minha fase de
solidão a dizer “não” às coisas que não me interessam.
Você já foi analisada?
- Comecei por três vezes, mas descobri que estava em mim
mesma a resposta.
- Como é que você define Maysa?
- Uma pessoa essencialmente boa de coração, bastante
insegura, mas já a caminho do encontro. Nunca fiz meu autorretrato.
- De onde vem essa insegurança?
- Virá talvez da brusca mudança no tempo, desde que eu nasci
até hoje. Houve tantos tabus que hoje não existem mais, e isso me criou essa
insegurança. Quanto a tudo. Como, por exemplo, conviver com as demais pessoas
fora do meu círculo de família. Mas não tenho nenhuma insegurança artística.
Inclusive acredito que eu esteja numa fase muito boa de busca.
- Você conseguirá, Maysa, o que busca. Qual é o ritmo de
sua vida diária?
- Meus horários são muito desencontrados. Trabalho até às
três horas da manhã e não consigo dormir sem ler. Portanto só durmo mesmo lá
pelas seis horas. Preciso de nove horas de sono para ter a voz clara. Acordo às
três ou quatro horas da tarde, que é a hora melhor para eu ouvir música, para
memoriza-la. Meu almoço é às seis horas da tarde, portanto, o ritmo está todo
trocado. Sempre ligo a televisão – para ver se melhorou um pouco – até a hora
em que me visto para começar o trabalho. Isto quando trabalho, o que acontece
quase sempre. Nos intervalos, vou à praia, levo livros e papel para escrever.
Tenho feito alguma poesia sem intenção de musicar.
- Qual é o tipo de leitura que interessa a você?
- Toda e qualquer leitura que me prenda, como é o caso do
último livro que li, sobre a vida de Milena, a amiga de Kafka. Não me lembro do
nome da autora. Eu adoraria poder ter sido Milena. Estou inteiramente fascinada
pelo livro, de modo que não quero lembrar-me de outros. Gostei também enormemente de O Compromisso, de Kazan.
- Fora a música, o que é importante para você?
- Tudo é importante para mim. Viver ao máximo as coisas boas
da vida e tentar esquecer o que passou. O que não é fácil aqui no Brasil;
esquecer, quero dizer.
- Se você não cantasse, seria uma pessoa triste?
- Eu nunca pensei na possibilidade de não cantar. Mas acho
que hoje em dia a gente não tem muito porque ser alegre. Felicidade a toda hora
é privilégio dos burros.
- Quando é que você começou a cantar, Maysa?
- Aos dezenove anos. Antes eu compunha. Numa reunião na casa
de papai, estava presente o diretor de uma fábrica de discos. Eu estava
esperando um filho, e ele então me convidou para, depois que nascesse a
criança, fazer um disco que reunisse todas as minhas músicas. Tudo o que esse disco
rendeu foi dado à campanha contra o câncer. Então veio a televisão e
consequentemente começou tudo, com toda a família contra, o que veio ocasionar
uma separação.
- Na sua opinião qual é o melhor intérprete da música
popular brasileira?
- Atualmente, como intérprete,
Taiguara. Como cantora, Elis Regina.
- Você tem muitos amigos?
Tenho muitos conhecidos. Tenho um grande amigo. Ítalo Rossi.
- Você tem dificuldade de se ligar às pessoas por
amizade?
- Tenho, sim. Além disso, depois de meu segundo casamento,
tudo é tão harmonioso, sem ser monótono, que até tenho receio de quebrar essa
harmonia com a vinda de outras pessoas.
- Cada noite, na hora de seu show, você se sente
inspirada para cantar ou já fez disso um hábito sereno?
- Toda noite para mim é uma primeira vez, mesmo que isso
parece lugar comum. Sofro uma barbaridade antes de entrar em cena. Depois é
como se tivesse nascido outra vez.
- Que conselho você daria a uma jovem que caísse na
depressão como você caiu? Qual é o melhor meio de sair dela?
- Acho conselho uma coisa muito perigosa. Eu não pedi nem
aceitei nenhum. De qualquer modo, acredito que a humildade seja muito
importante. Um dos meios de sair da depressão é não achar que o próprio problema
seja o pior de todos.
- Quando você estava deprimida, houve algum amigo ou
amiga que lhe desse a mão?
- Eu estava só, nessa época. Afastei-me de todos para não
agredi-los com meus problemas. Dependendo do temperamento de cada um, deve-se
ou não apoiar-se em alguém.
- O que fez com que você passasse, nesta sua nova fase, a
gostar do público e não temê-lo, como anteriormente, quando você evitava cantar
de frente, defrontando-o?
- Talvez eu sentisse que fisicamente estava agredindo o
público. Com a minha aparência. Eu era muito gorda, suava muito, era
antiestética. Isso digo agora, mas talvez naquela época eu tivesse medo do
público.
- Agora como sua família está recebendo a segunda Maysa?
- Não creio que haja uma segunda Maysa. Apenas o tempo foi passando,
e minha família evoluindo e sobretudo vendo que minha ressurreição, como você
diz, só está me fazendo bem.
- Em todas as composições suas você deixava transparecer
a busca do amor. Você o encontrou?
- Encontrei, sim. Encontrei amor em tudo o que hoje me
cerca, no diálogo, no dia-a-dia, até nas pequenas briguinhas com os seres
amados. Aprendi até a gostar um pouquinho
de mim...
- O que fez você cair em depressão?
- Uma série de fatores, de datas, de frustrações na minha
infância e que se juntaram à minha juventude. Não tive tempo de ser nem criança
nem jovem: casei-me cedo.
- Você tem filhos?
- Tenho um, com treze anos, do meu primeiro casamento. E
estou partindo agora para outro.
- Mas, isso, Maysa, é uma grande novidade: para quando é
previsto o nascimento?
- Se não perder a criança, como já aconteceu duas vezes,
será para março do ano que vem.
- Como será a mãe Maysa nessa nova fase?
- Não saberia dizer, Clarice, mas acho que bem gagá.
- Maysa, apesar de você responder tudo o que lhe
perguntei acho você uma pessoa reservada.
- Eu acho que não.
Nesse momento, entrou na sala seu marido, Miguel Azanza, e
concordou comigo: apesar de tudo, Maysa é reservada. Miguel é muito cordial,
simples e com ar de grande companheiro.
- Como é que vocês se conheceram Maysa?
- Miguel estava num grupo que foi ao Cassino do Estoril, em
Portugal, para me ouvir cantar. Miguel tinha vinda de Marrocos especialmente
para me ver cantar, porque já conhecia meus discos. Queria confrontar a voz
conhecida com a pessoa ainda desconhecida. Ele me chamou atenção por ter sido o
único do grupo a não se aproximar de mim para um autógrafo. Fui eu que, no
final, me aproximei dele, e tudo começou. Um ano depois estávamos casados. O
engraçado é que nos casamos duas vezes: uma pelo México e outra pela Bolívia.
Estamos esperando a anulação canônica do primeiro casamento de Miguel para
casar pela terceira vez, porque eu sou viúva do meu primeiro casamento.
Tomamos um café e conversamos
- Talvez, Clarice, você tenha me achado reservada ou intimidada
porque era muita a vontade e a curiosidade que eu tinha em conhecer você.
Também leio sempre os seus diálogos, e me senti muito honrada por ser uma de
suas entrevistadas.
Continuamos a conversa, e fiquei sabendo, por exemplo, que
Maysa é ótima dona de casa, gostando de lidar com tudo que se refere ao lar, à
cozinha, à arrumação. Como se vê, a Maysa real é muito diferente da Maysa mito.
E ganha muito com a aproximação.
(Matéria publicada originalmente no número 910 da revista Manchete, em 1969)