De Maysa para Dolores Duran
Duas mulheres, duas estrelas, duas vidas assustadoramente distintas e ao mesmo tempo extremamente parecidas. Elas tiveram seus destinos traçados, e por obra do acaso (ou não) quiseram que suas vidas se encontrassem nesta longa estrada. Dolores Duran e Maysa – é um puro caso de amor.
Uma amizade sincera, preenchida pela ternura e o carinho de duas figuras existenciais, dois, talvez os maiores símbolos da Fossa Brasileira, do velho amigo Samba-Canção. Boa, era a amizade de Maysa e Dolores, pelo simples motivo de que não consigo desassociar de tal relação sentimentos puros e belos como o afeto, o amor, a afeição e a sensibilidade. Sentimentos estes que são todos transpostos pelas suas vozes inesquecíveis, duas estrelas eternas da música popular brasileira.
Da carinhosa amizade à saudade eterna, da boêmia antológica nas noites de Copacabana ás homenagens sensíveis em shows e discos. Maysa jamais esqueceu Dolores – e também, esquecer Dolores é algo inimaginável para quem quer se seja –, segundo Maysa o primeiro encontro teria sido muito antes do começo da carreira musical, propriamente no Clube da Chave em Copacabana, nos idos de 1954, Maysa teria ido ao histórico Night Club levada pelo Pai – Alcebíades Monjardim – ao voltar para casa, a primeira coisa que fez foi se debruçar sobre o diário e lá escreveu como ficou maravilhada com o ambiente e o que mais havia lhe chamado atenção: um talentoso e jovem pianista – nada mais nada menos, que Tom Jobim – e uma cantora de bochechas muito grandes que só cantava bolero – a saudosa Dolores Duran.
Maysa e Dolores só voltariam a se ver após o início da carreira de Maysa, quando ela resolveu se mudar definitivamente para o Rio de Janeiro. Daí por diante, após uma identificação imediata, as duas não mais se desgrudaram, segundo a própria Maysa – ela, Dolores e Marisa Gata Mansa, eram amigas de dia, de tarde e de noite – entre Maysa e Dolores, não havia apenas uma identificação mútua. Havia também uma enorme identificação musical, pois desde o início de sua carreira, Maysa tinha em Dolores uma grande referência musical, sendo ela, uma de suas maiores ídolas. Afirmação esta, que sempre foi referendada em suas entrevistas e depoimentos quando era indagada sobre a amiga. Mas além de Maysa e Marisa Gata Mansa, aquela boêmia turma da Copacabana dos Anos Dourados era formada por outras figurinhas fáceis da nostálgica noite carioca, figuras como – Sylvia Telles, Antônio Maria, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e Mister Eco – além da querida Dolores. Sobre esta deliciosa época, Maysa afirmava sentir muitas saudades, principalmente de todos os amigos já mortos.
Duas cantoras sofisticadas, as duas figuras mais expressivas do Samba-Canção, duas – das maiores compositoras da história da música brasileira – Maysa e Dolores Duran eram mais do que duas cantoras e compositoras de Fossa, além de símbolos de uma era de ouro para a MPB, as duas são os personagens mais bem acabados da Fossa Brasileira. Dotados de um raro refinamento musical, eram intérpretes de êxito em mais de 4 idiomas. Transgressoras e arrojadas, foram cantoras que influenciaram mais da metade da geração seguinte da MPB e contribuíram de forma massiva para a evolução musical que acarretaria no surgimento da Bossa Nova, e desse próprio gênero extremamente brasileiro que nós chamamos comumente de MPB. Compositoras de talento esmerado, refinaram toda a dramaticidade exagerada do Samba-Canção, ao compor grandes sucessos como “Ouça”, “Meu Mundo Caiu”, “Tarde Triste”, “Fim de Caso”, “Castigo”, “A Noite do meu bem”, entre outras. Maysa e Dolores eram na verdade duas mestras em transpor a beleza dos sentimentos e das emoções em suas letras, sem qualquer sombra de dúvida, não há como falar de música popular brasileira sem citar estes dois nomes, é mais do que obrigatório. Os nomes – Maysa e Dolores Duran – são verbetes essenciais no extenso livro da nossa música.
Dolores Duran. Uma mulher marcada pela angústia e a presença iminente da morte, impressa nos versos da famosa “Noite de Paz” – “Por uma só noite assim poso trocar o que eu tiver de mais puro e mais sincero / Uma só noite de paz pra não lembrar / que não devia esperar e ainda espero.” – dizem que foi sua última composição, não há confirmação, mas fica a reflexão da dúvida. É tudo verdade, mas contrariando esta Dolores sofrida e dolorosa das letras, os amigos sempre narraram uma outra Dolores Duran – alegre, animada, feliz e entusiasta – bem diferente daquela figura realmente dramática. Dolores carregava no peito a certeza da morte e a angústia da vida, porém, jamais deixou que o medo e a tristeza dominassem seu espírito e conduzissem seu viver. Era realmente uma mulher de fibra, corajosa, encantadora. O infarto tragicamente a levou do mundo aos 29 anos, extremamente jovem, a morte fulminante durante o sono e a frase que teria dito se perpetuaram – “Estou cansada, não me acorde. Quero dormir até morrer” – a narração do episódio assusta e espanta qualquer alma sensível. Não houve tempo para qualquer tipo de dor ou sofrimento, o infarto foi como um sopro de vento que carregou sua alma ao céu. Fulminante, assim como a intensidade daquela mulher que levava a vida pulsante sobre a boca.
As coincidências entre as trajetórias de Maysa e Dolores são enormes, as vidas das duas estão entrelaçadas de uma forma surpreendente. Vários episódios ficaram gravados na cabeça de Maysa, que os relataria em saudosos depoimentos anos depois, um deles fala sobre uma certa ligação no meio da madrugada. Dolores teria telefonado para Maysa no meio na noite para cantarolar os versos de uma nova composição – “Solidão” – “Ai, a solidão vai acabar comigo / Ai, eu já nem sei o que faço e o que digo.” Maysa relata que naquele exato momento teve uma crise de choro e desabou em prantos, disse também que não havia jeito de gravar aquela canção. E assim foi feito, Maysa nunca gravou “Solidão”. compartilhavam sentimentos, confissões, segredos, amores, histórias. Foi uma amizade muito intensa, talvez porque durou tão pouco – 2, 3 anos – mas este fato passa despercebido perante a cumplicidade fraterna das duas amigas. A amizade de Dolores e Maysa realmente não duraria muito tempo, em 24 de outubro de 1959, a cantora carioca sofreu um infarto fulminante.
Deste episódio dramático, Maysa narrou um dos momentos mais emocionantes de sua vida. Era noite daquele mesmo dia 24 e Maysa iria estrear um show na boate Au Bon Gourmet, prestes a começar o espetáculo ela estava no camarim da boate quando pediu a um amigo que ligasse para o Litte Club, onde Dolores estava fazendo temporada, e pedisse que ela atrasasse seu show, porque a platéia do Au Bon Gourmet também estava querendo ir assisti-la. E quando terminasse o show, Maysa iria com todos para o Little Club. Depois de feita a ligação veio o choque – naquela noite não haveria show de Dolores, nem naquela, nem em nenhuma outra noite de sua vida – pois Dolores Duran estava morta. Após o baque inicial Maysa não se esquivou do show que estava preste a estrear, mesmo desmoronada por dentro com a alma corroída pela dor da morte da amiga, ela subiu ao palco para prestar a sua homenagem a Dolores Duran. Após rapidamente alterar a ordem das músicas, subiu ao palco e cantou “Noite de Paz”, aquela mesma música em que Dolores perpetuou sua angústia, sua dor e sua esperança.
Ao longo da carreira, Maysa renderia homenagens à amiga, como uma gratidão pelo carinho, o afeto, e a ternura lhe entregue por Dolores. Maysa já foi ao seu encontro, de certo – estão felizes, e em paz – na paz que tanto sonhavam, que tanto ansiavam, não há mais nenhum sofrimento, nenhuma dor, nenhuma tristeza. Elas vivem a vida infinita, finalmente foram fazer jus ao que eram: estrelas. Este ano, Dolores Duran completaria 80 anos de vida, rogo para que esta, que foi uma das maiores mulheres da história do Brasil jamais seja esquecida. Tomo os versos da mais bela composição de Dolores – “Estrada do Sol” – em uma feliz parceria com Tom Jobim, para dizer que hoje Maysa e Dolores ainda estão a brilhar como os pingos da chuva que ontem caiu, sem pensar quem foram, se sofreram ou se choraram. Já é de manhã e elas já deram as mãos para sair por aí e ver o Sol.