15 de março de 2011

Série: decifrando Maysa (parte 4)

Série: decifrando Maysa (parte 4)


Música - parte 4

A música era vida para Maysa. Taí, uma indefinição plausível e condizente para realmente tentarmos definir, o que valia de fato a música para Maysa. Era vida, sim, mas era algo muito mais abrangente e interior do que a própria vida poderia definir. A complexidade do canto de Maysa é algo absurdo, que engloba qualquer tipo de sentimento, que emanava de sua alma com ferocidade incrível, tentando traduzir todo o turbilhão imenso que era seu interior. Vem disso, a profusão imensa de emoções, ensejando momentos de grande paixão, solidão e tristeza profunda. Maysa tinha a necessidade de gritar através da música, tudo que seu espírito gritava ainda mais alto, tudo permeado por uma furiosa intensidade, que a fazia justamente, emanar tanta vida. Era uma necessidade de vida, a música era sua própria vida, confundiam-se as duas.
Deixemos os lirismos um pouco de lado. A música realmente tinha uma representação de vida para Maysa, mas qual seria o porque? Acredito, que a música era para Maysa uma válvula de escape, a única forma com que ela realmente conseguia descarregar sua fúria interior. Com todo seu imenso pranto, amargura, paixão e tristeza – reflexos da grande agonia que havia em seu interior. Quis o destino – ou algo maior – que a música fosse sua grande arma, uma forma de extravasar seus monstros. E se não fosse por intermédio da música, teria sido de qualquer outra arte – pintura, escultura, dança – Maysa precisava disto, precisava de uma válvula de escape para tudo que sentia. Ela cantava o que o coração gritava por dentro, era uma necessidade final. E foi exatamente isto, que a dignificou como cantora.
Maysa foi sem dúvidas a maior cantora romântica da história da MPB. Nem aquém, nem além de todas as outras, mas seu trabalho (e legado posterior) é algo, de mais brilhante que se encontra no cancioneiro romântico na história de nossa música. Os clássicos que escreveu, mais os outros grandes clássicos que interpretou, serviram para compor uma das mais belas obras da MPB. De brilhantismo e sensibilidade ímpar, Maysa foi uma heroína da MPB, sua obra é bela e grandiosa – praticamente perfeita. Seu legado é imenso e inesquecível, vai mais fundo que qualquer modismo bobo.
Indo a fundo em sua raiz, e ressaltando sua importância, concluímos que a música para Maysa era sua própria vida. Vem disso todo o respeito que ela impunha pelo ato de cantar, afinal era para ela algo quase sagrado. E a música para Maysa, também foi sua maior doação, sua maior entrega, uma mulher que fundiu a própria vida junto à música se iguala aos maiores gênios, só pode ser um gênio.  Poucos foram os grandes gênios, Maysa foi um deles. Compôs a música, pelos mesmos caminhos com que trilhava a vida, igual a ela foram poucos – Mestre Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Vinicius de Moraes e Dolores Duran – alguns, dos poucos, muitos eram seus próprios ídolos.
“Demais” – de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, está para Maysa, assim como “Non, Je Ne Regrette Rien” está para a diva Édith Piaf. A canção francesa, sempre foi apontada como o retrato perfeito da dramática Piaf, “Demais”, não diz menos de Maysa. “Todos acham que eu falo demais / e que ando bebendo demais/ que essa vida agitada não serve pra nada / andar por aí bar em bar, bar em bar...” se tornou sua marca registrada, e ainda hoje acreditam que eles versos são de sua autoria, mas não é nada demais dizer que não são já que tanto fala sobre ela mesma. A música de Maysa é mais internacional do que nós podemos imaginar, ela mesma é muito internacional. Maysa estava ao nível das maiores estrelas da música mundial. Sua alta dramaticidade e grande interpretação a punham no mesmo hall de cantoras como –  Édith Piaf, Billie  Holiday e Amália Rodrigues. No Brasil, ela se equiparou a grandes cânones da nossa canção, como – Elis Regina, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira e Maria Bethânia.
Se afastar da carreira – e conseqüentemente do canto – foi um ato absolutamente instintivo que demonstra muito da sua fragilidade humana. Maysa vivia momentos difíceis. No plano musical, era uma época de grande renovação e movimento político-musical no Brasil, e ela não se via engajada naquilo, não se via lutando por aquelas causas. Achou que sua música estava ultrapassada, sua dor era cafona, por essa época anotou – “Como vou poder cantar se a minha dor está fora de moda? Está parada pra pensar”. Com tudo isso, resolveu se afastar, por um lado, isto foi ótimo, pelo outro, lamentável. Mas nunca ouve qualquer tipo de decadência, e Maysa foi cuidar de si mesma. E a vida, sempre tão atribulada, levada aos atropelos, nunca contribuiu para qualquer tipo de estabilidade. Maysa vivia magoada, ressentida com aquela indústria da música que ajudara a amadurecer ao longo da carreira, e magoada com os amigos sempre tão distantes. Viva cansada, se encontrava muito exausta de sempre ter de lutar por tudo. E lutou a vida inteira para ser reconhecida coma uma grande cantora, que merecia muito respeito.
Longe da música, Maysa buscou uma outra via de comunicação, outra válvula de escape. Com isso, encontrou velhos passatempos – a pintura e a escultura – serviram como uma nova forma de extravasar emoções para Maysa, uma outra via de mão para tudo o que antes, era transmitido através da música. Vendo tudo o que criou neste período, observam-se trabalhos de grande expressão – riscos rígidos, traços fortes, cores sombrias, rostos tristes – amargos reflexos da dor que carregava no peito.
Como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade – “Restam discos, quadros, escultura, palavras. Restam as fotos”. Pois é, restam tudo isso, e uma história de música e vida que nunca será esquecida. Acredito que ainda falte para Maysa, o reconhecimento e o respeito por que tanto lutou, e cabe a nós respeita-la, – acima de tudo e de todos – o grande público, somos nós. Uma artista que lutou tanto ao longo da vida, e sofreu ainda mais por isso, merecia de nós, muito mais que o triplo do respeito e do reconhecimento que tem hoje em dia. Maysa foi uma grande heroína da MPB, mas falta, reconhecer esta grande heroína que ela foi. O Brasil ainda ama – e muito – Maysa, mas assim como faz com outras vozes, preferem adormece-las na memória. E neste país sem memória, heróis como Maysa, não podem ser esquecidos nunca. Está em nossas mãos, se ela fez tanto por nós, cabe a nós credita-lo o respeito e o reconhecimento que farão jus a sua memória.

Fim?

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