Na edição de 18 de maio de 1957, a revista Manchete contemplou os leitores de todo Brasil com uma capa que trazia um belo – e enorme – close de uma cantora novata, que gravara seu primeiro LP no ano anterior, e já causava um imenso furor em todo Brasil. Era Maysa, a primeira capa a gente nunca esquece! A chamada da matéria dizia: “Maysa Matarazzo: multimilionária vira cantora popular”. Na reportagem interna a Manchete resumia o furor em torno daquela cantora: “Dos milhões de cruzeiros aos milhões de fãs”. Com reportagem do jornalista Ivo Serra e fotos do consagrado Gervásio Batista, a Manchete revelava aos leitores a origem aristocrática e a história da “Cinderela às avessas”. Mas também punha a tona, a desarmonia que já imperava no lar da família Matarazzo.
Agora, o Blog oficial Maysa traz na íntegra para vocês a reportagem da revista Manchete. Boa leitura!
Maysa Matarazzo: dos milhões de cruzeiros aos milhões de fãs
Está é uma história de Cinderela. Mas ao contrário. É a história de uma jovem, bonita, milionária, de excelente posição social, que se viu atraída pelo microfone e o disco, não tardando em trocar qualquer lista de “dez mais” pelo sucesso como cantora popular. É a história da bisneta do barão de Monjardim, neta do senador Monjardim, filha do deputado Alcebíades Monjardim, capixaba de 400 anos, promovido a fiscal do imposto do consumo em São Paulo. É a história de uma mulher que porta o nome mágico de Matarazzo, mas prefere seguir decididamente a linha de Sílvio Caldas e Dorival Caymmi. A história, enfim, de Maysa Matarazzo, grande fortuna e não menor êxito como cantora de samba.
Concorrência de Matarazzo a Ângela, Sílvio Caldas e Dorival Caymmi
Carioca, criada em São Paulo por acaso, Maysa vivia, até faz pouco tempo, sua vida de menina rica, tendo passado pelos melhores colégios. Como muitas colegas de infância, todas “bem”, aprendeu música e ballet. Mas em vez de suspirar por Chopin, como mandava o bom-tom, escandalizava parentes da velha guarda, com sua mania de Noel e Ary Barroso. Quando esperavam que quisesse ir à Ópera, ouvir Bidu Sayão e Tito Schipa, causava novas decepções, mostrando predileção entusiástica, por Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso ou Carmen Costa. Convidada a ouvir Brailowsky ou Yasha Heifetz, preferia saber onde estava tocando Russo do Pandeiro. Apesar do curso de ballet, gostava cada vez mais de samba e batucada.
Desde menina gostava de ler, principalmente poesia. Só que, sendo Guilherme de Almeida e Olegário Mariano os poetas da moda, causava espanto, ao eleger Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes como prediletos. Aos 15 anos, era uma mocinha sem laço de fita na cabeça, gostando de pentear os cabelos com os dedos.
Sempre esportiva, precoce, inteligente, costumava cantar em festas de sociedade, acompanhando-se ao violão. Um dia, tomou coragem e cantou um samba-canção que ninguém conhecia: “Adeus”. Aos que elogiavam, respondia que era de uma amiga. Mas, à primeira pessoa que disse não ter gostado, rebateu com orgulho: “Pois é meu. Letra e música. Desculpe ter nascido...”.
Pouco tempo depois. Embora sua mãe, D. Ináh, também de tradicional família capixaba, ainda a julgasse apenas uma menina, Maysa já se sentia apaixonada por um amigo do pai – André Matarazzo Filho. Mas era interna, no Sacré Coeur de Marie, e só nas férias ou de vez em quando estava com a família. Era uma criança, inclusive para o filho do conde Andrea Matarazzo. Mais dois anos, e se transformava numa das moças mais bonitas da sociedade paulistana. O romance com Andrézinho, nascido em seu próprio lar, teve fecho de ouro, com o noivado de ouro e logo depois o casamento, apontado pelos colunistas sociais da capital paulista como um dos acontecimentos marcantes do ano.
Da lua-de-mel nos "States" às propostas vantajosas
Lua-de-mel nos Estados Unidos e Europa, longa viagem de volta e vida social intensa, em São Paulo. Mas a srª. Maysa Matarazzo continuava fiel ao gosto da música popular. Se lhe pediam, nas festas, que cantasse, não se fazia de rogada. Sua voz, rouca e fora do comum, ganhava em volume e qualidade. A interpretação era seu forte. Não imitava ninguém, com um jeito todo seu, diferente, personalíssimo, fossem as músicas, americanas, francesas, italianas ou brasileiras. Nunca deixava de interpretar alguma coisa de Noel Rosa. Só muito solicitado, apresentava seus sambas-canções: “Tarde Triste”, “Adeus”, “Quando Vem a Saudade”, “Agonia”, “Marcada”, “Rindo de Mim”, “Não Vou Querer” – todos com letra e música de sua autoria.
Até que a srª. Maysa Matarazzo, que sempre prestigiara festas de sociedade com fins assistenciais, concordou em dar contribuição pessoal mais importante à campanha contra o câncer: um recital, na boate Cave, em benefício do Hospital Central do Câncer. Autêntico sucesso – artístico, de público e crítica. O nome da cantora Maysa Matarazzo apareceu então com maior destaque, nos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, espalhando-se por todo Brasil. A repercussão chegou a preocupar alguns membros das famílias Matarazzo e Monjardim. Outros, pelo contrário, gostaram.
Surgiram logo propostas vantajosas para que ela cantasse no rádio e na TV. Foram recusadas. Houve insistência: era pena que voz tão boa, tão diferente, e interpretação tão admirável, fossem privilégio dos grã-finos. Enquanto isso, crescia a curiosidade dos que, na boate, tinham conhecido as músicas e a voz de Maysa. Foi quando surgiu a fórmula conciliatória: ela concordou em gravar suas músicas, doando os direitos de sambista, letrista e cantora a diversas associações beneficentes, principalmente à campanha contra o câncer, comandada, em São Paulo, pela srª. Carmen Prudente. A RGE cuidou da gravação, encarregando da orquestração o maestro Rafael Puglielli. Foi assim que surgiu o long-playing “Convite para ouvir Maysa”, que, em pouco tempo, alcançou grande sucesso, sendo o disco mais vendido em São Paulo.
A maior revelação e André no meio-termo
No julgamento anual dos cronistas de rádio de São Paulo, para a escolha de “os melhores do ano de 1956”, Maysa foi apontada como “a maior revelação feminina”, “o melhor compositor”, e “o melhor letrista”.
Voltaram as propostas do rádio e da TV paulistas. Várias vezes, foi anunciado e desmentido o ingresso de Maysa Matarazzo no broadcasting e no vídeo. Mas o casal André Matarazzo já ganhara um herdeiro, Jayminho, e Maysa estava com todo seu tempo reclamado pelo bebê. Além disso, na família, a corrente do “contra” era a mais forte.
Ela se limitou a compor mais dois excelentes sambas-canções – “Ouça” e um outro dedicado a Noel Rosa e ainda sem título. Sua voz voltou a ser privilégio da gente-bem, nas festas íntimas da sociedade paulistana, até que, contrariando muita resistência, Maysa resolveu cumprir seu destino de cantora e de sambista: aceitou um contrato da rádio e televisão Record para um programa ás quartas-feiras, doando sua parte a associações de caridade. O patrocinador (fabricante de “Bombril”, amigo da família, conseguira demover, pelo menos temporariamente, os últimos opositores).
Foi assim que a srª. Maysa Matarazzo se tornou uma das maiores atrações da TV e do rádio, em São Paulo. Suas fotografias enfeitam vitrinas e balcões das casas de discos. Seu nome, antes apenas nas colunas sociais, hoje aparece também nas páginas dedicadas à música popular.
Isto, certamente, não agrada ao ramo oposicionista da família. Quanto a André, está no meio-termo, entre as duas correntes. É possível que não seja muito favorável à carreira da esposa como sambista e cantora popular, mas gosta de vê-la fazer sucesso. Até ajuda a colecionar recortes de jornais e revistas para o álbum de Maysa.
O "new-look" de Maysa tem violão. Sua vocação, ave liberta, se cumpriu.
Seu amor ao samba obrigou Andrézinho a ficar entre correntes opostas.