36 anos sem Maysa
Para algumas coisas, a vida infelizmente não é feita de
“ses”. Se Maysa não tivesse entrado em seu carro aquele dia com destino à
Maricá; se Maysa não tivesse que ir à Maricá naquele final de semana; se Maysa
tivesse ouvido os conselhos de seus pais; se Maysa tivesse tido uma boa noite
de noite de sono no dia anterior; se Maysa estivesse ao menos bem... SE, Maysa
não precisasse se isolar das pessoas. É, com tantos “ses”, talvez, Maysa
estivesse viva hoje – quem sabe? – mas, infelizmente, a vida não é feita de
“ses”. A vida é feita de fatos – consumados – que muitas vezes podem ser
tristes, e duros de se acreditar. E nesta triste história que eu vos conto hoje, o fato
foi que Maysa partiu pra não mais voltar no entardecer do dia 22 de janeiro de
1977. Um sábado de sol forte no verão carioca.
Mais difícil que aceitar os fatos, é lutar contra eles.
Ainda mais, quando se trata de um fato tão triste, tão lamentável. É fato que
Maysa não merecia um desfecho destes, mas é fato que Maysa é tão maior do
que qualquer outra coisa triste que tenha ocorrido com ela. Ora, Maysa, chamada
“um símbolo de ressurreição”. Não há que se lutar contra os fatos já
consumados. A vida também é feita de fatalidades, e a morte de Maysa pode ser
considerada uma sucessão de fatalidades. Há que se culpar quem numa hora
dessas? Ao destino? Não há culpados nem inocentes nesta história. Apenas
milhares de vítimas que se sentem até hoje desoladas da presença de uma mulher
inigualável, insubstituível, inesquecível, Maysa.
Mas, o que é a morte perto de um mito? Nada. A morte se
torna um nada absoluto perto de uma lenda. Não existe morte para os nomes
gravados na história. É um clichê barato, e até óbvio, dizer que Maysa está
viva no coração dos que amam. Em suma, está viva nas músicas e discos que
gravou, nos fotografias, nos programas de televisão. A morte, novamente se
torna pequena demais perto da obra de Maysa. É impossível desassociar a vida,
da obra de Maysa. E sua vida, foi o maior legado que poderia deixar. Aos
trancos e barrancos – e muitas vezes aos prantos – ensinou muita coisa para as
pessoas. Lições que perduram, que denotam um ser humano excepcional; uma mulher
fabulosa. Tudo que for dito sobre Maysa será muito pouco perto de tudo que ela
fez.
Exceto a morbidez da cena em questão; nunca vi
uma citação mais condizente:
“Quando chegou o momento do último adeus à cantora, na hora
em que seu corpo foi levado à sepultura, ocorreu um tremendo tumulto, pois a
massa ali presente se apossou do caixão não permitindo, sequer, que seus
familiares e mais íntimos amigos chegassem perto. Num dado momento, alguém
muito nervoso gritou desesperadamente: ‘Os familiares, pelo menos os
familiares!’ A resposta veio forte, anônima e sem contornos: ‘A Maysa é nossa e
é o povo que vai enterrar!’”
Dito isso, qualquer palavra dita se torna pequena demais,
desnecessária. Calo-me, com a certeza que o povo nunca vai esquecer a Maysa.
Vitor Dirami
“Não sei como me conformar. É duro. Tenho de ser forte, pois
Inah, minha mulher, está mal e temo por ela. Nesta hora, é difícil falar de
minha filha, que eu tanto amava e admirava. Vem-me à lembrança tudo. Desde sua
infância, a adolescência, o primeiro casamento, suas vitórias e derrotas, sua
inocência e sua ternura, até a hora em que nos despedimos. Recordo suas
palavras: ‘Monja – era assim que ela me chamava, Monja... –, ou te adoro,
Monja.’ E eu, sentindo um estranho pressentimento, não sei o que, pedi que ela
adiasse a viagem para o domingo. Ela riu e disse que no domingo o trânsito estaria pior, congestionado. Nós a amávamos muito, embora ela se sentisse carente de
afeto. Minha filha passou parte de sua vida procurando alguém que a
compreendesse, e não encontrou. Maysa teve uma vida angustiada. A vida de minha
filha foi mesmo uma saga de sofrimentos e solidão. muitas vezes tentou sucumbir
mas se reanimou. Ela gostava de gente, gostava de se comunicar. Não sei como
isso pode acontecer. Ela já dirigiu empilecada de São Paulo para o Rio, e
jamais sofreu acidente algum. Agora, quando já não mais bebia, quando mostrava
uma enorme vontade de viver, mesmo sozinha, acabou-se. Ela tinha ideia de se
fixar em Maricá, longe de tudo e de todos. Vivia a decorar sua casa, onde
sonhava, um dia, receber o filho e o neto. Mas tudo se acabou, ela está morta,
e com ela parte de minha vida. Que será de Inah, como poderemos suportar a
ausência da querida Maysa?
Alcebíades Monjardim, pai de Maysa – Revista Amiga, 1977
A UM AUSENTE
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade
"Também não tenho medo da morte. A morte é uma coisa que tem de acontecer, embora eu pense às vezes que não vou morrer nunca. É isso mesmo: tenho a impressão de que jamais morrerei. Sinto que meu corpo não foi feito para morrer."
Maysa Figueira Monjardim
(06/06/1936 + 22/01/1977)