Manuel Bandeira: um poema e sua história
PRINCIPIEI
a gostar de Maysa primeiro pelo seu nome. Maysa! Parece um amanhecer. Depois...
eu tenho no meu quarto de dormir cinco instrumentos a que muita gente tem
horror porque não sabe que eles são como a antiga navalha de barbear:
utilíssimos e inofensivos quando só usados há seu tempo e hora: telefone, à
direita de minha cama; rádiozinho, à esquerda; televisor, em frente; vitrola,
perto da janela, refrigerador, na sala contígua (de sorte que nela faz frio, mas
no quarto tenho ar fresco e seco e não ouço o ruído da máquina). Considero-os
cinco amigos do peito, só que o televisor e o rádio uma vez por outra me pregam
uma falseta.
Pois
é, eu ouvia falar muito de Maysa, de sua voz, de sua vida, de suas
excentricidades, e, uma noite, à hora do programa dela, liguei o televisor e
disse comigo: vamos ver como é que é. Apareceu Maysa de costas, depois de
repente se virou, com cara de pantera acuada e desfechou um “boa noite”, que
dava a impressão de ter saído não da garganta, mas do fundo do estômago. Depois
vieram as visagens, muitas visagens. Por fim, o canto. A voz de Maysa não tem
nada de extraordinário. Diz mais do que canta, e a sua dicção também nada tem
de extraordinário. Para ser inteiramente franco, não gostei muito não. Todavia,
terminado o programa, desligado o televisor, quem disse que eu podia esquecer
os olhos e a boca de Maysa? Eles me perseguiam, era tão pungente a expressão
deles, expressão de amargura, a mais intensa que eu já tinha visto na vida ou
na arte! Na semana seguinte estava eu colado ao televisor, à espera do programa
de Maysa. E os olhos e a boca de Maysa continuavam a me perseguir fora do
programa. Ora, isso não estava dentro do meu programa. Resolvi, então, aplicar
à obsessão o golpe da catarse. O artista leva esta vantagem sobre o
não-artista: pode livrar-se das obsessões, reduzindo-as a poema, estátua,
pintura ou desenho. Vou fazer um poema sobre Maysa, disse com bravura, e
comecei a assuntar. Pretendia ser absolutamente sincero, nada de galanteio, de
orquídeas brancas, de marrons glacês. No meio da coisa, considerei que Maysa
afinal é mulher, que Maysa podia magoar-se (ela já tem sido vítima de tanto
cafajeste)... desisti do poema.
Mas
o poema é que não desistia de vir a furo. Um dia veio. Eu tinha que bater a
minha crônica para o jornal, não achava assunto que me atraísse, só se falava,
então, em Brasília, de súbito me deu o estalo, principiei a teclar na Hermes
Baby:
Neste
momento a mão é para Brasília
(Todos
os caminhos levam a Brasília)
Mas
eu gosto de tumultuar o trânsito
Vou
louvacionar Maysa!
Três
quartos de hora depois o poema estava concluído.
Procedi,
então, como costumo fazer quando fico satisfeito com o meu trabalho: entrei a
narcisar-me nele. Confesso a minha fraqueza: gosto de lamber a minha cria, se
ela me sai bonitinha. O narcisamento consiste em reler a versalhada dez, vinte,
trinta vezes. Não há defeito, por pequeno que seja, que resista a essa prova.
Posteriormente,
considerando que as quatro linhas iniciais soavam demasiado a crônica,
suprimi-as, por caducas, da versão final e definitiva do poema.
Não
sei se Maysa gostou ou não da louvação. Vinicius me disse que ela gostou.
Maysa
não me deu bola.
MAÍSA
Um
dia pensei um poema para Maísa
“Maísa
não é isso
Maísa
não é aquilo
Como
é então que Maísa me comove e me sacode me buleversa me hipnotiza?
Muito
simplesmente
Maísa
não é isso mas Maísa tem aquilo
Maísa
não é aquilo mas Maísa tem isto
Os
olhos de Maísa são dois não sei o que dois não sei como diga dois oceanos
não-pacíficos.
A
boca de Maísa é isto isso e aquilo
Quem
fala mais em Maísa a boca ou os olhos?
Os
olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa
se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de
limão
A
boca de Maysa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos
de Maísa podem ser sérios e como a boca de Maysa pode ser amarga!
Boca
da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável)”
Cacei
imagens delirantes
Maísa
podia não gostar.
Cassei
o poema.
Maísa
reapareceu depois de longa ausência
Maísa
emagreceu
Está
melhor assim?
Nem
melhor nem pior
Maísa
não é um corpo
Maísa
são dois olhos e uma boca
Essa
é a Maísa da televisão
A
Maísa que canta
A
outra eu não conheço
Não
conheço de todo
Mas
mando um beijo para ela.
Poema originalmente publicado na coluna de Manuel Bandeira no Jornal do Brasil, em 1960.
(Reportagem publicada originalmente na revista A CIGARRA, em 1961. Agradecimentos ao leitor Edson Luiz Mendes que tornou possível a publicação desta matéria. Muito obrigado!)