Maysa: “É tão difícil caminhar”
Entrevista a Clóvis Levi
“Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...”
Em 1969 você afirmou: “Sei que estou me desorganizando para me organizar de novo.” Em 1975, seis anos depois, como vai essa sua organização?
- Essa declaração foi feita quando voltei ao Brasil, medrosa, assustadíssima, querendo fazer uma porção de coisas diferentes, como a preocupação de limpar aquela imagem da mulher bêbada, da mulher gorda. Hoje estou procurando ficar em paz, tranquila, estou me deixando encontrar.
Porque você disse que a Maysa cantora não tem relação alguma com a Maysa ser humano?
- Porque nunca consegui ser a pessoa. Eu achava que só viam, em mim, a cantora com aquela imagem negativa, e nunca o ser humano. Havia, então, uma grande carência e um profundo desencontro dentro de mim: eu nunca sabia se estava sendo recebida como uma cantora ou como eu mesma. Eu mesma acabei sem saber quem eu era. E, quando uma pessoa se desconhece, ela não sabe nunca o que dar para os outros.
Porém a Maysa com quem conversei, parece estar cada vez mais apta ao ato de doar. Principalmente, porque começa a dar a si mesma, um justo valor.
- Hoje em dia já estou achando que “Maysa” é um negócio muito sério, é um negócio que impõe um respeito filho da mãe, que tem uma verdade... tem um peso muito importante. Estou começando a me achar uma pessoa muito bacana. Só está faltando me aproximar de mim mesma mais um pouquinho.
E o que é que você está fazendo para incentivar essa aproximação?
- Estou fazendo análise! (“Ela se ilumina, passa a falar com mais entusiasmo”). Faço análise de grupo e individual com uma das pessoas mais maravilhosas que já vi, ela é um sol, uma dimensão. (“Ela faz uma pequena pausa. Fica tensa.”) Mas, apesar disso, acordo sempre muito angustiada. É uma coisa muito estranha. Minhas mãos ficam muito frias e vem o desespero de não saber exatamente o que vai acontecer, um desespero de encontros, de desencontros, então, geralmente, eu me escondo, me meto numa cova e fico lá dentro. E fica difícil, para mim, tomar uma atitude que eu tenha programado. Sou incapaz de me programar, tenho medo de me programar.
Como é que você está se sentindo agora? Com disponibilidade para a entrevista? Ou angustiada, amargurada?
- Estou muito angustiada. Além do mais, hoje é segunda-feira, e segunda é sempre um dia de começar coisas, ainda é dia de voltar para o colégio interno.
Todo começo é angustiante?
- É. Angustiante, tumultuado, confuso. Eu não sei se estou agradando e meu medo é sempre esse: tenho um certo receio de ser demais.
Essa sua preocupação em agradar não será uma exagerada (e compreensível, num processo de análise) reação à a sua famosa agressividade?
- Acho que não, porque, no fundo, sempre tive essa preocupação. E eu acho que o que me fazia agressiva era a bebida. Era, talvez, para me defender de uma certa coisa que eu sabia que, de certa forma... fazia mal... ou melhor, pegava mal... fui criada dentro desses padrões que determinam que mulher não bebe. Então eu me defendia antes que me acusassem.
E hoje, depois de ter se submetido a um doloroso tratamento de desintoxicação, como é que você está com a bebida? (A resposta vem firme e imediata.)
- Muito bem. Totalmente em paz com ela.
Mas você bebe normalmente?
- Não. (Aí, então, Maysa vacila.”) Bebo... não... não posso. Não devo (A voz quase some). Mas faço de vez em quando. (“Assume a situação e a voz volta a ficar firme.”) Há momentos em que tenho uma terrível necessidade. Mas, agora, eu faço diferente. Fico dentro de casa. Antes eu ia para a rua... agredia meio mundo...
Mas você ainda se embriaga mesmo dentro de casa? Perde o controle?
- Não. Não. Não perco o controle (“Agora ela relaxa e sorri.”) ligo para o mundo inteiro. É aí que eu busco o relacionamento, é aí que eu tenho coragem de falar com as pessoas, de dizer o que sinto, de dizer que gosto delas... tenho uma profunda necessidade de dizer que amo as pessoas, mas só tenho coragem de fazer isso com a ajuda da bebida. Chamo aqui para casa as pessoas que eu amo, tentando juntar essas ilhas. As pessoas estão ficando cada vez mais sós, estão se separando cada vez mais, ficando cada vez mais ilhadas.
Mas você também ajuda esse processo, ilhando-se dentro desse apartamento...
- Ajudo. Ajudo muito. No momento em que eu quero essa aproximação...
Você mesma não acredita nela.
- Exatamente... e, aí, talvez, eu assuste as pessoas. Eu, geralmente, acabo destruindo as amizades, destruindo aquele amor que estou querendo dar. Geralmente, as pessoas não gostam de bêbados.
Você é uma bêbada muito chata? (Ela volta a ficar tensa.)
- Acho que sim. Muito chata. Tanto que já estou tão consciente disso que fico dentro de casa. (“Relaxa e ri.”) Fico só no telefone. (“Faz uma pausa. Fica séria.”) Bêbada, sou mais adulta, sabe? E sóbria, sou mais criança. Ficando bêbada eu assumo essa possibilidade de relacionamento que eu não devo ter tido, quando criança.
Depois de ter feito uma desintoxicação e continuando a beber você não está ameaçada de voltar a ser uma bêbada irremediável, sem controle?
- Sei que sou uma pessoa doente em relação à bebida, disso não tenho a menor dúvida. Sou uma pessoa que não pode se dar ao luxo de beber dois uísques só e parar. Então eu tenho de me moderar nisso. A desintoxicação foi uma coisa horrível, foram meses de grades, isso já tem seis, sete anos. mas os médicos me avisaram que eu iria passar por crises incríveis e que tudo seria muito difícil. Então, quando entro em crise, tento não beber. Eu procuro beber quando estou o mais relaxada possível.
Fale um pouco sobre os seis meses de grades (A resposta é definitiva.)
- Não!
É verdade que você ficou amarrada na cama? (Pelo rosto de Maysa passa uma sensação de terror.)
- Não! Não quero falar sobre isso.
Porquê? Isso ainda não está resolvido dentro de você? (Ela fala rápido, procurando cortar esse assunto.)
- Porque não interessa. (“Bem angustiada”) ... não me interessa... não me interessa... não é uma coisa sobre a qual interesse falar...
- Antigamente eu só chorava quando bebia. Atualmente, já consigo chorar sem beber e, que eu me lembre, é uma coisa de muito pouco tempo para cá. Sabe... é um negócio assim de você sentir... (“Maysa respira profundamente”) ... sei lá... agora mesmo, quando você me fez uma pergunta, já nem sei qual foi, a lágrima já estava saindo normalmente. E isso é uma coisa muito difícil de acontecer comigo.
Como vai o seu relacionamento com as pessoas?
- Está péssimo. Você pode chamar de pretensão, mas são poucas com quem eu gostaria de bater papo. Hoje, não tenho mais saco para aguentar determinadas pessoas (e determinadas entrevistas, inclusive, com gente que vem aqui me perguntar besteira). Parece que falta uma certa dimensão humana, sei lá... Tenho muita inveja das pessoas que falam nos “meus velhos amigos”, que se respeitam, que se veem. Com seus defeitos e qualidades, não importa.
Você não consegue manter seus amigos?
- Não. Eu perco. Perco porque fujo deles com medo de perdê-los. Fujo antes que isso aconteça.
Quantas pessoas você acha que são realmente suas amigas? (Há uma pausa, ela vacila um pouco.)
- Não sei... a Leila (“sua secretária”) é uma grande amiga que eu tenho, é uma mulher extraordinária... acho que todo o grupo que está fazendo análise comigo, não sei se são meus amigos por forças das circunstâncias, mas são meus amigos... acho que vou parando por aí... tem o Mister Eco, tenho um carinho enorme pelo Mister Eco (pausa.) Bom, tem o Aluísio de Oliveira, mas o Aluísio é diferente... é meu irmão, é outra coisa. Luisinho Eça... tenho paixão por Luisinho, é meu compadre... Gal Costa, por exemplo, é uma das coisas mais lindas que já vi na minha vida, coisa mais pura, mais doce, mais suave. O que essa menina tem dentro dela para dar, em nível de carinho, é uma coisa maravilhosa.
Mas você encontra esses amigos só uma vez na vida e outra na morte?
- Não. Gal e eu temos um relacionamento bastante bom. Mister Eco, por exemplo... a gente sempre se fala. Eu tenho uma saudade enorme dos meus amigos que já morreram: Antônio Maria, Stanislaw, Dolores. A gente era uma coisa, era um bloco – embora embalado no álcool – mas era um negócio para valer, a gente se via sempre, estava sempre junto, as pessoas se precisavam. Hoje todo mundo é muito sozinho, a solidão é grande demais.
Mas a solidão existe mesmo com o Carlos Alberto?
- O que eu gostaria de obter na vida, em termos sentimentais, seria a completa realização desde encontro com Carlos. Tem seus atritos, mas eu acho... tenho a impressão que vai bem...
Há quantos anos?
- Desde 72. Está se lixando... se polindo, as arestas estão sendo aparadas. Carlos é uma pessoa extraordinária, de uma pureza, de uma beleza... é um homem que vê transparente... eu gostaria que isso se firmasse, que fosse uma coisa que realmente prevalecesse. Estou cansada já de... de buscas... de desencontros. Estou realmente cansada, amargurada. Por enquanto esse relacionamento está meio difícil porque nós dois tivemos uma vida muito tumultuada. Então nós temos muitos, muitos, muitos machucados pelo corpo inteiro, então de vez em quando a gente se agride muito, às vezes até sem querer... então, dói profundamente, dói e há um medo que a gente volte a encontrar aquelas situações do passado, aquelas pessoas, aquelas coisas ruins da nossa vida. E a gente, então, se recolhe como uma ostra.
E por falar em se recolher, fale um pouco da crise que fez você se fechar como uma ostra por causa da gordura.
- Foi terrível. E não foi tanto no sentido da estética. Acho que aquela gordura toda era uma espécie de capa para me esconder, quase um invólucro. Eu tenho a impressão de que aquele negócio todo suava, me parecia uma coisa suja. Era uma imagem feia. Mas, ao mesmo tempo em que eu não cuidava do corpo, eu também me defendia: na televisão, só deixava que a câmera me pegasse do pescoço para cima. Trinta e seis quilos a mais...foi uma época realmente terrível. E a coisa ainda não está resolvida: hoje, se eu vou comprar roupa, vou direito para as cores escuras, para o preto, porque a coisa da gordura ainda está dentro de mim, eu não estou acostumada ainda.
Há alguma possibilidade de você voltar a engordar?
- Não. Inclusive, é horrível quando eu engordo um quilo minha cuca fica estourando, é um negócio de louco (Pausa. Sorri.) Agora, tem vezes que não dá, tem dias que preciso comer loucamente, é um processo de carência, sei lá. Como à beça e aí me vem o sentimento de culpa, eu engordo dois, três quilos, é um troço chato pra burro. Mas eu jamais voltarei a ser gorda. Não é só a gordura física, mas o que ela representava dentro de mim.
A gordura dificultou o teu relacionamento com as pessoas?
- Acho que sim. Pelo menos, durante o dia. Eu não me lembro de ter saído durante o dia, naquela época de gorda.
Mas eu não estou falando de você para as pessoas; e sim, das pessoas para você.
- É. Eu achava que as pessoas se sentiam agredidas. Eu tinha uma casa na Barra e, lá, recebia meus amigos, mesmo de maiô. Mas, naquela época, eu nunca colocaria um maiô aqui em Copacabana.
(Hoje Maysa é uma mulher magra. Porém seu rosto está um pouco marcado e há um ar de cansaço em torno dela. Mas, paradoxalmente, o que se nota é um renovar constante de esperanças, um incrível potencial de vida. Sua vontade seria a de fazer música, jornalismo, teatro, cinema, tevê. Gosta de tudo e é pena que haja tão pouco tempo. Todavia, com tantas coisas para fazer, ela se tranca em casa e nada produz. O potencial está emperrado. Ela é uma artista, hoje, com sua criatividade minada. Por que Maysa nunca mais conseguiu compor?)
Em 69 você declarou que não havia atmosfera para compor. Isso existe ainda hoje?
- Existe.
Atmosfera interna ou externa?
- Interna. A externa, inclusive, em que ela pode me afetar? Por eu não estar fazendo sambinha de breque? Por não estar atualizada com o momento? Eu não sei o que é estar atualizada com o momento, porque o que está dentro de você é o que vale, o momento é o meu e não o que está lá fora. Tenho escrito muita poesia, muita coisa..., mas eu não tenho coragem... não sei o que é... não estou conseguindo botar música...
Há quanto tempo você não compõe?
- Desde 71. O “Tema de Simone”, para a novela “O Cafona” foi a última coisa.
Mas não existe um motivo específico que impeça você de criar?
- Aí é que está: não sei. Tá embutido, tá lá dentro..., mas não sei o que é....
(Maysa, uma mulher sempre à procura de respostas. Maysa, uma mulher de 39 anos que não dorme de perna esticada com medo que lhe puxem o pé (“É um trauma do colégio interno, a pior coisa que aconteceu na minha vida”). Maysa, uma mulher adulta que se sente – no mundo – como a Maysa-criança: sempre procurando agradar as freiras do internato. Para não ser nunca castigada. Para não ficar sozinha no quarto escuro. Maysa, cujo nome está tão ligado – muitas vezes levianamente – à palavra suicídio.)
Afinal, você tentou o suicídio quantas vezes?
- Várias.
E sem estar bêbada?
- Algumas vezes.
Mas é evidente que uma pessoa que vive tentando se suicidar não está mesmo a fim de morrer.
- Também acho. Eu sei que não quero morrer. Mas acontece que isso tudo é uma espécie de apelo, um pedido de proteção. A gente, de repente, se vê só, se sente rejeitada. E a gente sabe que uma tentativa de suicídio, traz, de novo, para perto de nós, as pessoas de quem a gente gosta.
E é importante, neste momento, lembrar a fase inicial da entrevista. Pois é com ela que a entrevista acaba:
- Hoje já há um caminho percorrido do meu processo de descoberta... Há um amor pela pele..., há um certo cuidado pelo corpo que, antes, não existiam. A mente ainda está um pouco..., é... tapada, cheia de certas imagens, certos padrões. Mas já começando a caminhar...
(Reportagem publicada originalmente na revista Ele Ela de julho de 1975.)
Agradecimento: Maysa Oficial