Fernando Sabino
A voz que vem do coração
Aperto
o botão da campainha e espero. Tive de subir um lance de escada, o elevador não
vem até aqui. É um prédio antigo numa rua transversal de Copacabana. O
vestíbulo é amplo – reparo que o papel de parede está descolado junto ao chão,
mostrando uma cicatriz no reboco. Quando começo a acreditar que a campainha não
esteja funcionando a porta se abre:
-
Ela
está para chegar a qualquer momento. Entre, por favor.
É
Leila, sua dedicada amiga e secretária. Sigo-a através de várias dependências,
inclusive um quarto de dormir. O apartamento, de cobertura, me parece fino e
comprido como um navio.
-
Não
repara, estamos em obras.
Ela
me serve um uísque e me deixa à vontade. Enquanto espero tenho tempo de reparar
em tudo, mas estou inquieto, como um mistério que terei de enfrentar de um
momento para outro. Vou até o terraço, que se prolonga em todo o comprimento da
fachada, extenso e vazio, como uma plataforma de estação. Debruço-me na parte
que dá para o mar, fronteira à janela do apartamento onde morou Augusto
Frederico Schmidt. A lembrança do poeta morto me deprime, a altura me dá
vertigem. Volto para a sala e continua a pesar-me uma sensação de insegurança,
emanada dos próprios móveis que me cercam, marcados pelo uso, dos quadros que
cobrem a parede, densos de sofrimento, dos livros na estante, todos de
espiritismo e ciências ocultas (que mais tarde ficarei sabendo não serem dela).
Meia-noite em ponto – hora fatídica das velhas histórias de assombração. Mal
tenho tempo de acomodar-me e tomar o meu uísque para sossegar o espírito: ela
acaba de chegar.
De
repente tudo se ilumina. Como uma curva de estrada sob os faróis de um carro, a
sala se acende. Tudo se ilumina com a presença magnética de uma mulher que
acaba de entrar, fremente de simpatia, descontraída, aberta, comunicativa, e
que se aproxima de mim pedindo desculpas pelo atraso. Sua maneira de me apertar
as mãos me liberta instantaneamente da inquietação. Só que não vai ser nada
fácil escrever sobre ela. Vejo apenas dois olhos diante de mim, que são como os
de Teresa no poema de Bandeira: mais velhos que o resto do corpo – os olhos
nasceram e ficaram 10 anos esperando que o resto do corpo nascesse. E entendo
sobre o que o poeta disse sobre os dela própria:
“Os
olhos de Maysa são dois não sei que, dois não sei como diga, dois oceanos não
pacíficos. Maysa são dois olhos e uma boca.”
A
boca de Maysa falando e meus ouvidos escutando. Procuro em suas palavras um
sentido lógico que complemente a emoção escolhida na sua voz de cantora. É
estranho como a admiração à distância pode às vezes queimar etapas: não nos
conhecemos senão indiretamente, através de amigos comuns como Aloysio de
Oliveira ou Vinicius de Moraes – no entanto, nem um minuto é passado e ela já
me fala de sua vida como se eu fosse um amigo de infância. Corremos o risco de
só conversarmos assuntos sobre os quais eu não poderia escrever.
-
Porque
não? Pode escrever sobre o que você quiser.
Ela
vem de uma seção de análise – a análise de grupo: parece embalada na franqueza
ali exercida, prolongando-a em tudo que me diz. Prefere análise individual:
-
Já
tenho os meus problemas, porque vou me chatear aguentando os dos outros? O que
eu quero é viver a minha vida, amar, ser amada, fazer amor. Sofro de solidão.
Sou uma romântica.
Como
um analista improvisado, vou tentando explicar o seu temperamento, a partir da
qualidade que parece presente em tudo na sua vida: a necessidade de amar e a
fatalidade da solidão; a força da mulher erigida em mito e a imaturidade de
criança; a moça de sociedade e a vida boêmia; a artista profissional e a
amadora que gosta de pintar e escrever; até mesmo a mulher magra com tendência
a engordar.
-
Não
foi tendência a engordar: foi bebida mesmo. Tomei um pileque que durou de 58 a
62. Fiquei com 96 quilos. Deixei de beber e perdi litros e litros.
Eu
bebendo, e ela tomando uma xícara de café a cada uísque meu.
-
Beber
é muito bom. Muito melhor que não beber. Mas eu não podia: ficava impossível,
agredia as pessoas. Um dia vi um amigo nosso saindo pelos fundos para fugir de
mim, fiquei chateada, resolvi parar.
A
surpreendente desinibição com que ela fala no problema é a prova de que soube
enfrentá-lo. Quando todos a supunham com a carreira encerrada, ressurgiu como
se tivesse renascido. Não é sem razão que admira Sarah Vaughan ou Ella
Fitzgerald, mas sua admiração maior é mesmo por Judy Garland.
-
Eu
me casei muito moça: com 17 anos. Ele era 18 anos mais velho que eu, para mim
muito mais pai do que marido. Não levei propriamente vida de sociedade, mas me
sentia muito tolhida no meio daquela gente toda. Acabava tendo de jogar buraco,
pif-paf, ir a boates... o que eu gostava era de cantar.
Aprendeu
piano e aos 12 anos compôs a sua primeira música. Que acabou em disco, quando
tinha 19 anos, sugerido um dia por um produtor em visita à sua casa. O sucesso
deixou a família desconcertada: não era exatamente o que esperavam dela. Por
essa ocasião teve um filho (hoje com 18 anos). A família inteira compareceu a
sua estreia na TV Record. Daí para frente a situação ficou insustentável.
Deixou a família e continuou cantando: no Rio, em Buenos Aires, em Paris, dois
anos na boate Blue Angel em Nova Iorque. Sete anos de cura e repouso na
Espanha. Outros casamentos, quatro ao todo. E voltou a cantar.
O
novo long-play que está lançando esta semana talvez seja o mais importante dos
25 que já gravou: representa a sua nova maneira de cantar e a sua verdadeira
maneira de ser. Tentou o teatro, tentou a novela, tentou o show popular, com
jogos de luzes e pernas de fora, numa obstinada procura de renovação. Mas não
encontrou como agora a verdade da sua arte, despojada de artifícios, na voz
nascida nota por nota diretamente do coração. É ela própria que está ali,
autêntica, vivida e amadurecida. Não esconde idade: está com 38 anos feitos.
Não tem medo de envelhecer nem de morrer. Tem medo é de enfrentar o público.
Mesmo indiretamente através de uma entrevista ou do que escrevam sobre ela.
Hoje, por exemplo, pensou seriamente em inventar uma desculpa para adiar nosso
encontro, dizer que o pai estava passando mal, ou que ela tinha ido para Maricá (onde ela está construindo uma casa que é atualmente o seu sonho de uma nova
vida e de um novo amor). Mas acaba conversando comigo até quatro e meia da
manhã, e quando lhe digo, ao despedir-me, que não saberei como escrever sobre
ela, sugere que eu ouça seu novo disco, preste atenção nas palavras:
-
Eu
estou toda ali.
(Publicado originalmente no CADERNO B do JORNAL DO BRASIL - Rio de Janeiro, 2ª feira, 11 de novembro de 1974.)