20 de outubro de 2013

Imprensa: Um ano sem Maysa - Revista Manchete, 1978


Um ano sem Maysa



Uma jornalista uruguaia recorda momentos de ternura e angústia da cantora de Ouça. E fala da sua última carta, recebida no dia do desastre que a matou

Texto de Sara Tinsky · Fotos MANCHETE

“Não quero morrer. Apesar de tudo, eu gosto da vida”, disse Maysa, em sua última entrevista para a TV, em janeiro de 1977, dias antes de se despedaçar com seu carro num desastre. Viajava sozinha para seu refúgio na praia de Ponta Negra, em Maricá, RJ. Levava no carro uns discos de Frank Sinatra e Chico Buarque e sua esperança de recomeçar tudo. Havia escrito: “Vou ser avó exatamente quando desejo ser mãe de novo. Terei amadurecido aos 40?”
Pelo menos, parecia ter acabado de se construir e fixar raízes no chão, deixando de ser aquela mulher que eu conheci em Punta Del Leste, imensa, toda de negro, só olhos (“dois oceanos não pacíficos”, segundo Manoel Bandeira). Em 1961, voltando ao Uruguai, ela acabou por descobrir que eu a seguia – como se segue um mito –, ouvia todas as suas audições e era autora de uma carta tão carinhosa que se tornara ríspida. Caiu nos meus braços no estúdio de televisão: “Só sou amarga quando noto a falta de afeto. Se encontro o carinho, como ousaria ser agressiva?”
No fim das suas apresentações, Maysa gostava de dizer: “Parei de cantar, para continuar vivendo.” E apesar de não conseguir ser livre, de lutar contra tudo e principalmente contra si mesma – “De 58 a 63 minha vida foi um pileque só” –, esforçava-se para só cantar o que queria. Tinha coragem de acreditar no sofrimento e, se fosse necessário, de preferi-lo ao tédio. “Sempre sofri e continuo sofrendo. Mas agora aprendi o valor de cada coisa.”
Seus inimigos a acusavam de viver entregue à autopiedade. De procurar em seus seguidos romances após o casamento fracassado um homem que não existia, um ser mitológico, um escudo contra a gordura, a feiúra imaginária e a sede avassaladora. Mas foi ela mesma quem declarou: “A mulher livre, quando ama, só usa a sua liberdade para defender o amor.” Era tão desassombrada que parecia desaforada. Atreveu-se a se apresentar na Europa para público tão exigente quanto o do Olympia. Teve coragem de ser jurada de programa de televisão, de gravar com jovens, de subir ao palco carioca usando uma capa de vison quando o vison significava o passado Matarazzo – e personagens desse passado estavam na plateia, com diamantes verdadeiros e senso crítico talvez falso. Prontos para julga-la. Ela saiu, coberta de flores.
Quando um dos seus discos foi lançado, em 1974, ela me mandou dois exemplares para o Uruguai. Temia que um deles se quebrasse e tinha essas crises de delicadeza: “Se um deles se perder, você fica com o outro.”
Nesse disco estava o arrastado e doente Você Abusou. Maysa achava que o cantava com toda a sua hipersensibilidade, “a sensibilidade da fera que não é bela”. Para ela, belos eram os outros: Miguel a quem amou, o filho Jayme para quem cantava Dindi e até Carlos Alberto, com quem partilhou seu último esconderijo, a casa branca de Ponta Negra, diante do mar aberto. Em 1975, nós nos encontramos outra vez e Maysa parecia ter vencido definitivamente a bebida e a gordura.
Começou logo a me dar notícias e ordens, sorria, mudava de humor a cada 10 minutos, falava de suas poesias inéditas, estava decidida a trabalhar em telenovela, em teatro, em tudo. E, um tanto pateticamente, me recomendou: “Cuidado para ninguém parar no bar.”
Realmente os fantasmas de Maysa eram compulsivos. Por isso é que, em cada uma de suas canções, ela parecia defender a própria vida. Quando estendia a mão, dava a ideia de se atirar inteira em busca do apoio tão difícil. Um pouco como na letra daquela canção que ela cantava: “Vai lembrar de alguém/Que só carinho pediu/E você fez questão de não dar/Fez questão de negar”...
Maysa me mandou sua última carta em 16 de dezembro de 1976. Por coincidência só me chegou no dia 22 de janeiro de 77, quase na hora em que, rumo a Maricá, ela começava sua última viagem.




(Matéria publicada originalmente na Revista MANCHETE, em 1978)

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