18 de maio de 2015

Imprensa: O que? Qualquer coisa. - Revista Veja, 09/09/1970


O que? Qualquer coisa.


Sobre a envelhecida – mas não esquecida – figura da mulher infeliz, a cantora Maysa vem desenhando nos últimos três meses o perfil ainda indefinido da pessoa famosa que se decide a correr o risco de mudar de atividade e sofrer críticas como qualquer principiante. Entrevistadora, apresentadora e repórter do DIA D (Record de São Paulo), ela tem mostrado inteligência, presença de espírito e, ao contrário da maioria dos apresentadores de TV, cultura. Mas não tem evitado os erros que todo principiante comete. O mais recente deles foi uma confusa entrevista nos EUA com o advogado do fanático Charles Manson, acusado de em agosto do ano passado ter comandado o assassinato da atriz Sharon Tate. Esse erro, seus novos planos e seu passado foram alguns assuntos de que falou na entrevista com Armando Salem, editor de “Televisão” de VEJA:

VEJA – Diga alguma coisa.
MAYSA – Ahn? Bemm... Eu posso dizer o que você quiser. Mas você não tem uma pergunta específica?
VEJA – Qualquer coisa.
MAYSA – Bom, tá perfeito, mas eu preferia que você dissesse sobre o que. Você é jornalista há muito tempo? Digo, faz tempo que você é repórter de VEJA? Você é repórter de VEJA?
VEJA – Sim, sou repórter de VEJA, faz tempo que sou jornalista e entendo sua preocupação. Não sou um foca*. Agora, não entendo seu espanto com minha pergunta. Afinal de contas, foi uma pergunta exatamente do gênero da que você fez ao advogado de Charles Manson no Hall of Justice, de Los Angeles. E com a mesma insistência.
MAYSA – (silêncio perplexo)
VEJA – Você deve assistir aos vídeos tape de seus programas e se tiver o mínimo de senso crítico...
MAYSA – Sim, vi o tape no Rio de Janeiro logo que cheguei de viagem e tive vontade de morrer. Se pudesse desligar o botão da minha televisão e tirar o programa do ar, teria tirado. Infelizmente, a gente não viaja por conta própria, mas com o dinheiro dos outros. E o programa que dá IBOPE, não importa se bom ou ruim, eles levam ao ar. A TV brasileira não existe para ser muito inteligente.
VEJA – Nesse caso a coisa muda de figura, não conhecia você pessoalmente e pela TV você parecia ser uma mulher orgulhosa e pretensiosa que...
MAYSA – Eu, orgulhosa? Porque?
VEJA – Talvez pelo seu porte, pelo ar teatral da pose sempre estudada...
MAYSA – Mas eu não sou estudada. Sou autêntica. Procuro sempre agir com naturalidade, a não ser...
VEJA – Não vem ao caso. Isso fica para mais tarde. O negócio é discutir sua entrevista com o advogado de Manson. Você conseguiu com exclusividade a cobertura do julgamento. Teve o advogado à sua disposição, o auxiliar do xerife, uma amiga de Manson e não fez nada. Deixou todo mundo sem saber nem mesmo se Manson estava na sala do tribunal. E, o que é pior, depois de um raio de luz, da insistência do advogado em que você fizesse uma pergunta específica, perguntou se ele achava Manson culpado.
MAYSA – Não sei o que aconteceu. Sabe quando você sonha que está fazendo algum troço, e quando está ali, com tudo à sua disposição, vem alguma coisa e lhe tolhe todos os movimentos? Minha voz não saía. Eu não conseguia coordenar nenhum pensamento. Sei lá, estava abobada. Se eu tivesse me preparado, teria feito uma coisa melhor, mas fui avisada às 10 horas da noite, pelo auxiliar do xerife, de que poderia ir ao Hall of Justice, inclusive com a câmera de filmagem.
VEJA – Sabe o que é uma pauta?
MAYSA – Sei, é aquele resumo da história que a gente faz...
VEJA – Não. Esse resumo também é importante e você não fez...
MAYSA – Não vai querer que eu lhe mostre que conheço o caso Manson?
VEJA – Claro que não. Mas no programa você devia ter lembrado o caso. No entanto, partiu do pressuposto de que todos os seus telespectadores eram gente que acompanha as notícias através de jornais ou revistas...
MAYSA – Meu público é o público de “Ouça”, ou seja, de todas as classes.
VEJA – Mas voltemos à pauta. Pauta é exatamente este roteiro que eu trouxe para me orientar e não esquecer certos temas da entrevista que estamos tentando fazer. Coisa que pouquíssima gente parece conhecer em nossas televisões.
MAYSA – Concordo plenamente, tudo é improviso. Mesmo nas entrevistas cara a cara que eu faço no “Dia D”, muitas vezes, fico sabendo cinco minutos antes de entrar em cena, ou do encontro com o entrevistado, de quem e do que se trata. Não é que eu queira me desculpar, mas o resultado só pode ser o apresentado – às vezes; bom, outras, ruim. Mas acho importante o que está dizendo...
VEJA – O que?
MAYSA – Todas essas críticas. Ainda no domingo passado, a respeito do programa do Charles Manson, li em um jornal de São Paulo que o programa havia sido excelente, com mínimas falhas. Agora veja quanto foi ridículo. Para mim isso é que é o importante, sei que não sou uma repórter...
VEJA – Era minha próxima pergunta. Olhe aqui na pauta.
MAYSA – (Sorri.) Eh, facilita. Mas, dizia, não sou repórter. Vejo no jornalismo algo de fascinante e pretendo me dedicar a ele. Manson era a minha primeira grande experiência, falhei, não pretendo me desculpar. Mas não gosto das coisas pela metade, como fazia antigamente. Ninguém nasceu sabendo, vou aprender a ser jornalista, aproveitar o meu “background” – intuição. Tudo em mim é intuição.
VEJA – Desculpe. Mas você parece ser uma mulher culta. Não apenas impressiona por falar fácil, mas suas histórias demonstram uma mulher vivida.
MAYSA – Minhas histórias. Histórias do tempo em que eu bebia demais para ter um pouco de coragem...
VEJA – É tímida?
MAYSA – Ultra tímida. Naquele tempo eu cultivava minha infelicidade. Os jornais falavam que eu era uma bêbada, infeliz, e eu delirava com isso. Ficava feliz porque alguém me incentivava a ser infeliz. Na verdade, eu não era nada, não via nada. Terminei o ginásio e aos dezoito anos de idade estava casada. Jamais gostei muito de ler (li muito pouco). Morei na Espanha, vivi uns meses completamente dura em Paris (mas dura mesmo, não tinha dinheiro nem para comer), morei em alguns países da América Latina e, francamente, não tirei nada além do dia a dia. Claro, aprendi a falar inglês, francês, espanhol e italiano.
VEJA – Bom, vivida ou não, o certo é que você carrega uma boa bagagem. E o simples fato de falar várias línguas já dá para você se comparar com os demais entrevistadores de nossas TVs.
MAYSA – Pra começar, eu quase não vejo televisão e conheço muito pouca gente para me comparar...
VEJA – Você não gosta de televisão?
MAYSA – Para responder isso, tenho que cair no velho chavão: “É masoquismo ver televisão no Brasil”. Mas a verdade é que eu não aguento TV. Ela atrapalha o diálogo e eu adoro conversar. Prefiro bater um papo sozinha, feito uma louca, ou ir cozinhar, a assistir televisão. Além disso, pouquíssimos são os bons programas.
VEJA – O “Dia D” é um bom programa?
MAYSA – Vai ser um bom programa. Já tem muita coisa boa, mas é muito longo e tem uma série de enxertos (musicais, na maioria) que se repetem para encher suas três horas e meia de duração. Agora ele vai passar para uma hora e vinte e será mais de jornalismo do que musical. E existe uma preocupação tanto de minha parte como do Paulinho Machado de Carvalho (diretor da Record) em não assinarmos contrato. Assim, no dia em que um dos dois não estiver satisfeito faço as malas e me mando. Por enquanto estamos de acordo. E animados. Ele com o meu trabalho, eu com as perspectivas de poder fazer um bom jornalismo. Entrevistas humanas, que outros fariam mundo-cão. O velho professor de violino da porta do Municipal do Rio, que, enquanto a orquestra toca no interior do teatro, toca na porta, na rua, feliz, exibindo um cartaz de sua profissão, em busca de alunos. Quero chegar à essência desse ser, dessa vida.
VEJA – Mas você me parece tão epidérmica!
MAYSA – Sim, sou epidérmica. Para mim, tudo é pele. Emoção, o que me cerca. E o que sempre procuro traduzir nos meus programas é isso, o que estou sentindo. Por isso não aceito a imagem de teatral que você me fez na TV. Eu sou aquilo. Por isso tenho fé no filme que só eu e o cinegrafista que me acompanha em minhas entrevistas (Laerte Garcia Rosa) iremos fazer. Sem roteiro. Ele filmará um longa metragem onde eu procurarei viver todas as emoções do momento e tentar transmiti-las. E para tentar transmitir isso vou até o impossível. Não tenho medo de bebidas, tóxicos. Só do LSD. Mas, se for...

* foca é o apelido que se dá nas redações ao jornalista principiante.









  

(Entrevista publicada originalmente na revista VEJA, em 9 de setembro de 1970)

Um comentário:

  1. Fico aqui só imaginando se hj em dia algum(a) apresentador(a) falaria tão abertamente sobre o prório programa e a TV em geral dessa maneira.
    Não consigo ver nela a teatralidade que o reporter comenta, vejo sempre a intensidade de alguém que viveria menos tempo que a média, mas que viveria mais coisas que a média.
    Obrigada por compartilhar essa matéria.

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