Lançado
há cinquenta anos, em dezembro de 1974, nos formatos de LP e fita cassete, o
disco intitulado apenas Maysa ganhou em meio século uma única reedição em CD,
nos anos 1990. Pouco comentado, é lembrado mais por ser o último trabalho em
disco de Maysa, do que propriamente pelo seu conteúdo, uma grande injustiça. O
álbum marcava o reencontro de Maysa com o veterano produtor Aloysio de Oliveira,
com quem já havia realizado dez anos antes o seu primeiro e melhor disco ao
vivo, lançado pelo selo independente de Aloysio que marcou época no período da
bossa nova: a Elenco. Em 1973, Aloysio iniciara um novo projeto junto a
gravadora, dessa vez chamado Evento. O disco de Maysa foi um dos três primeiros
lançamentos desse selo de curtíssima duração e pouca repercussão, junto a um
novo LP de Billy Blanco em louvação a cidade de São Paulo e o relançamento do
álbum de 1958 que reuniu Dorival Caymmi e Ary Barroso.
Gravado num raro período
de calmaria na carreira de Maysa, o álbum, que do início ao fim levou um ano
para ser lançado, comunicava o seu estado de isolamento, tanto na indústria
musical quanto no pleno pessoal, como ela revelou em entrevista ao jornal O
Globo na época:
“Meu único programa, atualmente, é passar o maior tempo
possível na minha casa em Maricá. Só voltarei a ter uma vida artística mais
ativa se puder fazer tudo com muita calma. Senão, fico apenas no disco, que
está aí para quem quiser ouvir. É o que tenho para dar”.
O repertório do disco
seguia os moldes do seu antecessor, o célebre Ando Só Numa Multidão de Amores
(1970) – mais músicas antigas com roupagem nova e poucas contemporâneas. A
diferença principal de um trabalho para o outro é a escolha aparentemente
inusitada de clássicos carnavalescos como “Agora é Cinza” e “Rasguei a Minha
Fantasia” que ganharam novo sentido na interpretação de Maysa. Um movimento
semelhante ao que Elis Regina fizera em seu álbum de 1973, quando gravou “É com
esse que eu vou”. Sentido novo também ganhou a sua versão da música que abre o
disco, “Bloco da Solidão”, da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia, que Maysa
gravou com um surdo num dos melhores arranjos que o maestro Gaya fez para o
álbum. Incluída no LP de Jair Rodrigues Festa Para um Rei Negro (1971), Maysa
transformou “Bloco da Solidão” de um hino festivo para uma pungente declaração
de mágoa que não se deixa abater por nada. Entre as poucas músicas “atuais” do
disco, ela garimpou verdadeiras pérolas.
As outras são “Até Quem Sabe” de João
Donato, gravada em seu álbum Quem é Quem? (1973); mas que Maysa pode ter ouvido
na voz da amiga Gal Costa, que incluiu a música no álbum Cantar, lançado meses
antes do LP dela. Preciosa também é a sua versão jazzística para o maior
sucesso de Antônio Carlos e Jocafi, “Você Abusou”, que Maysa cantou com propriedade única, deslocando para a primeira estrofe os versos “Mas não faz mal/É
tão normal ter desamor/É tão cafona sofrer dor que eu já nem sei/Se é meninice
ou cafonice o meu amor...”. Ninguém deve ter entendido nada, uma pena. Novidade
mesmo, apenas duas e mesmo assim pela metade. Uma era “Não Sei” – letra de Aloysio
para o antigo standard estadunidense “No Other Love” (e que por si só era
baseada numa melodia de Chopin). A segunda, “Não é Mais Meu”, letra da própria
Maysa para um tema instrumental da novela Eu Compro Esta Mulher (1966), que ela
gravou para “fazer um carinho” no namorado de então, o ator Carlos Alberto, que
atuou na novela da TV Globo.
“O resto das músicas é de gente que estava comigo,
quando comecei. Há pedaços de Silvinha Teles, de Dolores, de Aloysio, de
Marisa. Não se trata de um saudosismo burro, de fossa, mas de um estado de
espírito”.
Embora esquecido hoje em dia, naquela época houve uma certa
excitação entorno do lançamento do novo disco da cantora, que apresentou as
músicas dele no Fantástico com quase dois meses de antecedência. Ela também mostrou
a regravação de “Morrer de Amor” no Especial Maysa, exibido na TVE-RJ no mesmo
ano. Ocasião em que comentou o novo álbum e recebeu elogios de Tom Jobim; que
naquele momento também tinha Aloysio de Oliveira como diretor da produção do afamado
álbum que Elis Regina e ele gravaram em 1974. Não existem números seguros que
informem o desempenho comercial do último álbum de Maysa, um indicativo de que
provavelmente não foi um êxito de vendas. A revista Veja, numa crítica
ranzinza, avaliou bem a performance vocal de Maysa, mas considerou que ela
“perdia” para os arranjos “grandiloquentes” do maestro Gaya. O que não deixa de
ser verdade e abre espaço para imaginarmos o que teria resultado o encontro de
Maysa com a guitarra e o violão de Lee Ritenour e Oscar Castro Neves (que fez
os arranjos de base do LP dela) – dupla que à mesma época, registrou um belo
álbum de bossa nova sob a tutela de Aloysio no selo Evento. Só podemos
imaginar.
Uma curiosidade é que o álbum lançado pela Odeon em dezembro de 1974
não se trata da última gravação de Maysa em estúdio. No ano seguinte, ela
registraria um obscuro compacto pela Som Livre, contendo de um lado uma
regravação pouco inspirada de “Ouça”, e do outro o tema da novela Bravo! para o
qual escreveu uma letra que chegou a renegar pouco tempo depois. É possível que
tenha sido esse compacto que motivou Maysa a reclamar do uso excessivo de
cordas em orquestração, durante a última entrevista que ela concedeu, em
novembro de 1976. Contudo, se os últimos anos de sua vida artística foram
titubeantes, o último álbum permanece como uma delicada conclusão de uma etapa.
Assim como o primeiro LP da cantora e compositora, lançado em novembro de 1956;
por coincidência, o último álbum também não mostrava a foto de Maysa na capa,
apenas aquarelas de gatos feitas por ela. Maysa pinta e borda, literalmente, em
seu último disco. Se ele começa extremamente dolorido, ao longo das outras onze
faixas Maysa vai transfigurar as emoções como bem entende; seja expondo a
melancolia oculta nos sambas alegres de carnaval, ou trazendo à flor da pele a
tristeza inerente a todas as decepções e esperanças de viver um amor. E é o
amor incondicional à vida que Maysa proclama na última faixa, “Hoje é dia de
amor” de Luiz Bonfá e Maria Helena Toledo, gravada dez anos antes por Rosana
Toledo e Dick Farney. É possível notar que ela termina sorrindo a última frase
da canção – “tudo insiste em fazer voltar/Pra esse céu/Pra esse mar/E o amor” –
difícil imaginar um jeito mais bonito de encerrar uma discografia.
Veja aqui o Especial de Maysa exibido na TVE-Rio em 1974.
Um Encontro (1974) álbum de Lee Ritenour & Oscar Castro Neves
Leia mais sobre o último álbum de Maysa aqui.
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