Por: Vitor Dirami & Marina M.
"O Sena desafia Maysa" O Cruzeiro - 1959
Quando Maysa desembarcou em Paris, naquele ano de 1959; ninguém poderia sequer imaginar quais seriam suas desventuras pela cidade-luz, talvez nem ela própria soubesse. Ao por os pés na capital francesa, Maysa se hospedou no luxuoso hotel La Trémoille, situado estrategicamente entre os Champs-Élysées e o charmoso rio Sena, uma das regiões de maior burburinho da cidade. Na agenda, nenhum contrato ou shows em boates. Aos amigos no Rio de Janeiro, se mostrava ainda mais enigmática nas cartas: “Vim aqui para ficar com os comigos de mim.” "Comigos de mim" - frase tomada por Maysa da obra do escritor português Fernando Pessoa, na verdade seria o título do livro de poemas que ela publicaria quando voltasse ao Brasil. Parece estranho e realmente é, mas para quem conhece Maysa, não há nada de esquisito nisso.
Realmente, em Paris ela parecia buscar um reencontro consigo mesma, uma busca incessante de fugir de tudo e todos em busca de uma liberdade tantas vezes sonhada, sem armas. Maysa parecia ter invertido a ordem dos dias – durante as manhãs trancafiava-se no quarto do hotel e só saía ao escurecer, para passear, sempre sozinha guiada pela mística da noite parisiense. Poucas vezes ela renunciou a este ritual cotidiano. Em uma dessas raras exceções, fez uma audição especial para a primeira dama brasileira – dona Sarah Kubistschek (esposa de Juscelino); que estava em Paris acompanhada das filhas Márcia e Maristela. Em outra ocasião, Maysa resolveu comparecer a inauguração da casa do Brasil, projetada por Lúcio Costa e Le Corbusier, no complexo da Cité Universitaire. Maysa deu o ar de sua graça, com direito á autógrafos e rapapés, porém no coquetel, logo observou: “Champagne é bom, mas só faz cócegas na gente.”
Não demorou muito para que ela trocasse a reclusão do quarto de hotel pela badalação da noite parisiense, parecia querer levar a vida como um sopro, sempre como se aquela, fosse sua última noite. Acabou se jogando de cara no existencialismo francês, nas mesmas rodas literárias frequentadas por Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Chegou há atitudes radicais, perambulando a esmo na madrugada, dormiu em bancos de praças e parques da cidade. Por dias seguidos, desapareceu do hotel e com uma garrafa na mão foi ao submundo de Paris investigar de perto os clochards – os mais vagabundos e boêmios de rua na cidade. Realmente, ela parecia viver os dias como se cada um fosse o último de sua vida.
Em Paris, Maysa tornou-se amiga de Vera Barreto Leite – uma das primeiras e mais famosas manequins brasileiras, à época, Vera era a modelo predileta de dois papas da moda mundial – Coco Chanel e Christian Dior. Cosmopolita e moderna, ela tornou-se a companhia perfeita para Maysa na peregrinação pelas ruas de Paris. Vera recordaria que certa vez, no início da manhã, Maysa sempre avessa a qualquer tipo de preconceito, chegou a tiracolo de um clochard e uma prostituta na casa de sua mãe – Maria Barreto Leite, funcionária do Itamaraty, há serviço da embaixada brasileira em Paris. Enquanto Maysa desfiava um rosário de aventuras na capital francesa, no Brasil ninguém sabia ao certo onde e como ela estaria. Foi aí que o colaborador de O Cruzeiro na Europa – Afrânio Brasil Soares, há descobriu em Paris. Suas revelações desabaram como uma bomba no Brasil, publicada pela prestigiada O Cruzeiro. Nas fotos de Hélder Duarte, todos cliques no melhor estilo noir, observa-se Maysa sempre pensativa, com olhar vago, em planos no Arco do Triunfo ou o rio Sena – em que o texto da reportagem fazia alusão a um vigésimo nono suicídio. Em uma das fotos ela aparece deitada na cama do hotel á penumbra escura, em outro clique, vê-se uma Maysa expressiva com o rosto em close, olhando vagamente para o horizonte.
Enquanto isso, Maysa continuava sua incessante peregrinação na cidade-luz . em pouco tempo, havia torrado todo o dinheiro que levou consigo para a Europa. Nas eternas andanças, foi apelidada por um amigo francês de “Pantera”, segundo a própria Maysa, viveu “Pintando quadros e vendendo para poder comer.” Pelo mesmo motivo, a gata de olhos verdes cantou em uma casa noturna de Paris, a La Lousianne, onde cantou pela primeira vez o eterno clássico “Ne Me Quitte Pas” de Jacques Brel. A boate passou a ser sua “furna” segundo a própria, uma espécie de refúgio. Toda a noite lá estava ela em um canto escuro, por trás de uma garrafa, ou então em pé no pequeno palco dominando o microfone da casa. Foi na La Lousianne que Afrânio Brasil Soares reencontrou Maysa e lhe arrancou mais uma entrevista histórica. Ele a procurou na casa noturna por três noites seguidas e só depois soube que naquele meio tempo ela esteve em Roma. As respostas de Maysa á Brasil Soares soavam como um trágico desabafo, no fim daquela longa noite na La Lousianne, o repórter lhe lançou uma última pergunta. Pediu para que ela imaginasse que a mesma questão lhe seria feita no exato instante de sua morte:
“Que fizeste da vida Maysa?”
“Chorei todos os dias. Sofri muito e nunca aprendi a amar.”
Ela ainda bateria muita perna em Paris. Só voltaria ao Brasil em meados de setembro, após quase quatro meses na Europa. Aqui no Blog Oficial Maysa, você vê na íntegra as revelações de Maysa à revista O Cruzeiro na edição de agosto de 1959 “O Sena desafia Maysa.”
“A Pantera visita Paris”
“- Vim a Paris para ficar mais com os “comigos” de mim – repete Maysa a quantos indagam o porque de sua presença na capital da França.
De fato, Maysa passa o dia todo sem sair do seu apartamento, no hotel La Trémoille, aonde vem recebendo as visitas da colônia brasileira, artistas franceses e onde está escrevendo seu diário de viagem que assim começa:
- Fugir à vida, a tudo o que é real, aos sonhos e as cores, esquecer que tenho um passado e que tenho de enfrentar o futuro continua a ser a minha obsessão.
Só quando a noite vai alta, a “Mulher Pantera” , como a ela se referiu um jornalista francês, sai do seu apartamento, acompanhada de um dos dois amigos que todo dia mudam. Dirige-se, então, para os bares e caves de Saint Germain des Prés, Pigalle, ou Montparnasse , onde soma as duas garrafas de uísque, que vem tomando diariamente, mais algumas doses. Uma dessas caves é a preferida de Maysa – a La Lousianne – que ela chama de “minha furna”. Até quatro horas da manhã, lá permanece, falando de seus “comigos” ou em hiatos prolongados de silêncio.
Quando deixa a cave, Maysa vai sozinha para os cais do Sena, onde fica muito tempo contemplando o raiar do dia.
- Tenho um forte impulso de me atirar nas águas do Sena – declarou a “O Cruzeiro” em Paris.
Num de seus passeios pelos cais, encontrou um “clochard”, com quem bebeu vinho e para quem cantou alguns números do seu repertório. Maysa traduzia para o vagabundo francês a letra de suas canções e, pela manhã, ao retirar-se o “clochard” ergueu a caneca de vinho:
- A vós, que compreendeis a vida...
Só por quatro vezes, Maysa saiu de seu apartamento durante o dia na sua presente estada em Paris. A primeira foi visitar as rádios e a televisão, onde concedeu entrevistas. Na segunda vez visitou dona Sarah Kubitschek, quando cantou para Márcia e Maristela, numa audição particular. Na terceira, compareceu à inauguração da Casa do Brasil na Cité Universitaire, e lamentou não encontrar uísque, e a quarta foi para atender um convite do bureau de “O Cruzeiro”, num passeio pelas proximidades de seu hotel.
Sua primeira tristeza sentiu-a ainda no avião. Nas proximidades de Paris, ouviu, a bordo, um programa da rádio Difusion Française em sua homenagem. E chorou ouvindo “Ouça”. Queixa-se de uma saudade que a acompanha a cada momento, saudade de alguma coisa que ela não sabe o que é. Não compreende como ame tanto a solidão e ache tão insuportável viver sozinha. Repetiu que gostaria de ter nascido homem, feio, preto e burro. Continua perseguida pelo medo dos bichos que voam, até mesmo de uma mosca. Não se lembra de um dia em que tenha despertado feliz e gosta de ruminar certas tristezas. Entre estas, lembra em particular o dia da sua primeira audição na rádio Mayrink Veiga, no início de sua carreira, quando todo o auditório se retirou na hora em que ela começou a cantar. Não conta com uma só amiga entre as mulheres, daí por que prefere as amizades masculinas.
Tem uma certa simpatia pelas pessoas complicadas e julga compreende-las bem. Acha desinteressante as pessoas normais e, incômodas, as vulgares. Diz que a sua extroversão é uma forma de introversão. Cada tentativa de suicídio dá-se numa hora em que supõe encontrar-se consigo mesma e acrescenta: “Qualquer pessoa se mata no dia em que se encontrar.” O seu futuro “é a dose seguinte de uísque” e “o passado a anterior”. Mede os dias pelas doses de uísque: há dias de 23 doses, outros de 27, alguns de 36, embora nunca se tenha dado ao trabalho de conta-las. Está nas suas cogitações, dar uma festa “à sua maneira” aos amigos de Paris, “uma festa que comece pelo fim.” Seu maior desejo, agora, é fazer uma “tournée” pelo mundo, acompanhada de Charles Chaplin, ou de um cachorro vira-lata. Acha que há poucas coisas boas em Paris, como encostar-se num poste de esquina. Assegura que jamais se suicidaria pulando da Torre Eiffel.
Maysa não sabe ainda para onde ir, quando se cansar das suas férias parisienses. Se não tentar o seu vigésimo nono suicídio, partirá para Cannes, Saint-Tropez ou Veneza. Talvez vá a Roma. Tem um contrato com o Cassino Estoril de 14 dias, mas não está certa de que o cumprirá. Se bem que a sua volta ao Brasil está marcada para o fim de julho ou agosto, pode retornar a qualquer hora se a saudade apertar.”
Carta de Maysa à revista O Cruzeiro:
“Entre um uísque e outro, estamos batendo um papo e o principal motivo é a sua simpatia
Estou encantada com a acolhida dos “Diários Associados” aqui, principalmente do pessoal do Cruzeiro.
Só achei feia a Miss Brasil desse ano que pude ver pelo Cruzeiro dessa semana que já recebi.
Espero, quando voltar, podermos bater um longo papo para que eu possa cantar as coisas e a atração que me dá as águas do Sena como um convite ao vigésimo nono suicídio.
Toda saudade e carinho de Maysa.”
Fotografada em cliques noir. Maysa aparece reflexiva, com olhar vago ao horizonte.
Rosto de “Pantera” (como a chamou um jornalista francês), ela faz 1º plano para o Arco do Triunfo. Embora o Sena seja um convite para uma morte lírica.
Deitada na cama do quarto do hotel á penumbra, iluminada apenas pela luz do abajur. Ali, Maysa alimentava sua solidão.
Maysa e os glacês: duas coisas tão distantes, mas que foram também se encontrar em Paris, num parque com a cantora de bolinhas no vestido.