15 de novembro de 2010

Série: decifrando Maysa (parte 2)

Série
Decifrando Maysa (parte 2)


Parte 2 – Amores
Maysa era uma mulher constantemente apaixonada, instantaneamente, facilmente, docilmente. Mas, porque? Acredito que a ferocidade da paixão de Maysa advinha de uma profunda carência e instabilidade afetiva que ela tinha dentro de si. Nada mais poderia explicar um temor tão grande a solidão, “ao medo de ficar só”. Desde adolescente era namoradeira, atrevida e avançada demais para os pacatos padrões da sociedade de então, digamos que ela conservasse o hábito que hoje chamamos de se “trocar de namorado, como quem troca de sapato”. Mas nada é tão simples assim quando se fala de Maysa. Ela foi uma adolescente que colecionava namorados, liberta, independente, já tinha o hábito de só dizer o que pensava, só fazer o que gostava e naquilo que em crê. A verdade é que Maysa era além disso tudo uma adolescente alegre, feliz, atrevida e esperta. Agora, imaginem esta mesma Maysa, casada, aos 17 anos com um marido multimilionário, membro da família mais rica – e de sobrenome mais opressor – do Brasil. Enfim, são duas realidades abissais, impossíveis de se crer. Por isso mesmo que o casamento de Maysa era completamente previsível no contexto de sua época, tudo era muito natural, simples e não era de se estranhar que uma garota de apenas 17 anos se casasse com um homem 20 anos mais velho que ela, e principalmente: sendo membro da tão tradicional família Matarazzo.
Não digo que Maysa não amasse André Matarazzo, pelo contrário, é leviano afirmar tal coisa vindo de Maysa. Poderia dizer que como uma garota de 17 anos, é muito natural deixar-se levar pelas armadilhas do coração, mas isto também é extremamente simplório vindo de Maysa. O fato é que Maysa conheceu André ainda criança, em uma temporada de águas na cidade mineira de Poços de Caldas, ali se firmou uma amizade entre seu pai – Alcebíades Monjardim – e o pai de André Matarazzo – Andrea Matarazzo – segundo Maysa, desde então ficou praticamente predestinado que ela se casaria com André. E assim foi.

E também foi do dia para a noite que Maysa acabou se encontrando sozinha dentro de uma gaiola de ouro mergulhada no ócio. Ela, uma garota jovem, bela e animada – ele, um homem vinte anos mais velho, empresário (e ocupado) com um verdadeiro império à frente para ser comandado. Maysa não demorou a perceber que havia mergulhado num abismo dos mais profundos, ela já conseguia prever toda sua vida: uma sucessão de jantares elegantes, recepções, jogos de pôquer e partidas de pólo aquático. O casamento foi-se tornando algo quase tão insuportável como o ambiente opressor da luxuosa Mansão Matarazzo situada na Avenida Paulista. Realmente, era algo insuportável para alguém com uma chama tão acesa dentro de si, seu espírito indomável, liberto e revolucionário não demorou a agir e neste momento a música volta a vida de Maysa para mudar sua rota em 180º graus.
Até ali seu nascimento como cantora e de seu próprio disco tinha um caráter beneficente, feito por uma dama da sociedade paulistana por puro diletantismo. Mas a partir do momento em que o disco começa a tocar nas rádios do eixo Rio – São Paulo, na medida em que Maysa começa a receber sucessivos convites para rádios, capas de revista, programas de televisão, não demorou a vir o ultimato de André Matarazzo. Neste momento se posicionaram de um lado – a tradição centenária – e de outro a chama incessante do espírito vivo de Maysa, como todos sabemos ela optou pela segunda opção. Maysa sintetiza muito claramente este período de sua vida, quando anos depois afirmou com sinceridade  que durante o período em que permaneceu casada, estava apenas "jogando cartas - de dia, de tarde e de noite." 

O desquite era algo inevitável, que viria mais ou menos dia, independente da carreira musical ou não. A partir daí a vida amorosa de Maysa passa a ser narrada nas páginas de todos os jornais. Porque, para mais escândalo da careta sociedade brasileira dos Anos 50 que não admitia que uma mulher separada pudesse namorar e ter as rédeas da vida nas próprias mãos, Maysa não estava nem preocupada em seguir um convencionalismo tão preconceituoso. Ao romper um casamento ela também esperava reencontrar o amor nos braços de outro homem, mas isto nem de longe aconteceu. Maysa acumulava vários namoros fracassados com outros vários homens errados, dizia não pensar mais na palavra casamento mas ao mesmo tempo confessava ao diário:
“...Não há mais tempo para a dor, não há mais nada senão a imensa vontade de acertar.”

Com Ronaldo Bôscoli, Maysa viveu a plena intensidade de uma paixão fulminante digna das mais criativas páginas novelescas como o próprio Bôscoli conta em seu livro de memórias lançado em 1994 – “Foi uma mulher que se entregou com uma voluptuosidade inteiramente nova e encantadora para mim. E isso não só no plano sexual. [...] Mas no plano profissional também. [...] Nós dois éramos muito amigos e nossa paixão transcendia tudo.” A primeira vista, os dois poderiam ser vistos como feitos um para o outro – duas personalidades vulcânicas, geniosos, divertidos, libertos, independentes, além de entornarem uma considerável quantidade de whisky – Maysa e Bôscoli realmente pareciam feitos um para o outro, mas nada é tão simples a primeira vista. Qualquer atrito dava origem a combates inimagináveis de tão ferozes, brigavam  feito cão e gato. Bôscoli apontava a traição como uma verdadeira obsessão de Maysa, que dava margem a atos impulsivos dela própria, traições vulgares que não tinham outro objetivo senão feri-lo, tudo fruto da enorme instabilidade emocional de Maysa. Mas mesmo com uma identificação mútua tão grande, o namoro de Maysa e Ronaldo Bôscoli não resistiu a um dos maiores problemas da cantora – o álcool – como ele próprio narra em sua autobiografia: “O motivo de nossas brigas era sempre a bebida. Um excesso o que Maysa bebia; aos poucos se tornou um absurdo. A quantidade de álcool consumido aumentava na mesma proporção em que crescia o nosso tempo juntos. [...] No início – como sempre no começo de tudo –, o alcoolismo de Maysa também me era bastante agradável. Embora obviamente eu não tivesse a dimensão de que aquilo fosse uma doença. Nem podia ter, porque eu também entornava bastante. [...] Só que o problema – que aliás foi o que baratinou e matou Maysa – foi realmente a progressão do álcool. De muita bebida ela passou a bebida demais. Eu, que não era nem um pouco abstêmio, ficava chocado. [...] Ela tentou sair dessa, por vários modos e meios. Mas realmente foi mais forte que ela. E isso nos separou.” E foi assim que mais um romance de Maysa se desfez, num fim de noite...

Aos montes de amores fracassados, Maysa seguiu ao longo da vida acumulando várias cicatrizes pelo corpo inteiro. Cicatrizes da alma como ela própria chegou a dizer. Maysa não conseguia não estar apaixonada, vivia em meio a uma perdição de amores, paixões fulminantes – muitas delas que só serviram para lhe sangrar o coração e machuca-la ainda mais. O longo casamento com o espanhol Miguel Azanza – que durou 10 anos – mostrou-se mais um grande fracasso. O que começou como uma bela aventura e seguiu como lua-de-mel aos poucos se desdobrou em uma relação insólita e estranha, com um marido acomodado e superficial que não conseguia enxergar os gritos desesperados da alma de Maysa. O que acabava descambando em traições mútuas. Ela chegava a maturidade dos 30 anos ao lado de um homem que não lhe transmitia a mesma maturidade e segurança que tanto precisava. Vivendo com Miguel na Europa, longe da família e dos amigos, Maysa passou a enfrentar constantes crises de solidão, medo e angústia. Acabava recorrendo a desesperadas tentativas de suicídio numa forma de pedir por ajuda, Miguel a salvava mas no entanto se mostrava indiferente e distante diante dos sucessivos clamores de Maysa. Ela o amava sinceramente, mas não via nele o homem que pudesse verdadeiramente ama-la e ajuda-la a conseguir um equilíbrio emocional que pudesse fazer com que ela finalmente vivesse em paz. Porém, Miguel era totalmente indiferente ao tormento de Maysa e não percebia o inferno que se passava dentro dela e apenas a perdoava. Miguel era um homem imaturo, superficial e acomodado, que confundia as emoções de Maysa e a deixava ainda mais perdida. Em breve, nem o amor dos dois conseguiria sustentar este casamento – minado por brigas e crises de ciúme – que foi se arrastando como um fardo ao longo dos anos, machucando ainda mais o já atormentado coração de Maysa.

A metáfora Ando só numa multidão de amores, de Dylan Thomas foi adotada como lema por Maysa, por sintetizar a forma como caminhava seu cansado coração. A verdade é que por trás da bela poética esconde-se um grito de desespero, Maysa se encontrava verdadeiramente perdida – sem rumo – em meio a uma imensidão de eternos amores que nunca cessão, talvez seu maior desejo fosse conseguir a proeza divina de amar em paz. Até ali Maysa já se encontrava cansada demais de sua atribulada trajetória, ela queria sim a proeza divina de amar em paz. Depois de tantos sofrimentos, tantas frustrações e tantos fracassos, Maysa precisava de tempo para poder se encontrar.

Carlos Alberto representava para Maysa a esperança de poder amar em paz. Era um homem que para ela representava a grande chance de alcançar uma estabilidade emocional, já que o próprio Carlos Alberto possuía uma grande integridade espiritual que em muito ajudou Maysa. Por ele, adotou a filosofia Rosa-Cruz, e foram os dois morar no lindo paraíso de Maricá, onde finalmente Maysa – em contato com a natureza – pode promover um encontro maior com o seu interior, desenvolver sua espiritualidade e alcançar uma estabilidade emocional – pequena e frágil – como ela mesma disse, mas que porém, caminhava para ser total. Carlos Alberto fez muito por Maysa, os dois se amavam profundamente e foram muito felizes, como ela mesma fazia questão de demonstrar publicamente. Mesmo vivendo em relativa paz e sob uma aura de amor com Carlos Alberto, Maysa ainda cultiva uma estranha angústia dentro do peito e seu eterno pavor da solidão, além disso o casamento com Carlos Alberto começou a desandar completamente, e Maysa, inquieta e confusa se descobriu apaixonada pelo maestro Júlio Medaglia, porém, ao mesmo tempo ainda amava verdadeiramente Carlos Alberto. Impulsiva, não exitou e caiu nos braços do maestro, mesmo ainda estando com Carlos Alberto, o casamento, não mais resistiu. A separação de Carlos Alberto foi profundamente dolorosa para Maysa, ela chegou a escrever longas cartas que nunca chegaram as mãos de Carlos em que expunha suas dores e seu tão grande sofrimento.
Se Maysa agiu certo ou não, não podemos saber.

 Tudo aconteceu de uma forma muito rápida – e até difícil de entender –, em pouco tempo parece que tudo ruía novamente e mais uma vez Maysa desabava e expunha toda a fragilidade e a imensa dor que carregava no peito. Não acredito que Maysa tenha morrido de tanto amar, acredito sim, que ela tenha morrido amando – profundamente – como era de seu feitio. Disso não tenho dúvidas. Seu gigantesco coração – atribulado, machucado, sofrido, insensato, magoado e lindo – jamais parou de pulsar por amor. Maysa amou até o último de seus dias, mesmo que tenha sido um amor tão carregado de dor, ela amou até as últimas consequências. Até o sem – fim da vida.

2 comentários:

  1. A digníssima frase "Ando só numa multidão de amores" é a síntese perfeita de todo esses amores e toda a sensação que Maysa sentia. Perfeito texto.

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  2. Ameiiii a segunda parte, Vitor.
    ..."Não há mais tempo para a dor, não há mais nada senão a imensa vontade de acertar.”
    Adoro essa frase, é muito profunda.

    bjossssss

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