Depoimento à revista A Cigarra
Agora,
Maysa, vamos conversar para ver como andam as coisas. Não trago perguntas
fabricadas, tenho comigo apenas um gravador. Sei que você saltaria para fora de
qualquer esquema montado, com ou sem base numa imagem mitificada.
-
Eu
tenho horror a mito. O mito é o anti-ser humano, é o antiqualquer coisa. Se me
mitificaram, eu nunca tomei conhecimento. Eu nem sei o que é mito.
Eu
sei que você continua gauche na vida,
mas para você ser gauche “é ter
coerência, é saber dizer não ao que não interessa, é saber onde encontrar o
equilíbrio mesmo no desequilíbrio”.
Mesmo
dentro do desequilíbrio! Então é por isso que agora, quando a vêem, as pessoas
pensam: “Ela parece tranquila”. E o pensamento soa estranho porque contradiz
aquela imagem de amargura agressiva.
-
É
que as pessoas colocam no artista uma série de problemas delas. Me dão rótulos
que não sei de onde surgem. E o que é tranquilidade? Para mim pode ser uma
coisa, para você outra. Acho que sou uma pessoa tranquila ou, pelo menos,
coerente comigo.
Mas de onde veio a imagem? Será que a dita não passava de
uma projeção da intranqüilidade coletiva sobre você? Ou será que...
-
Houve
uma época que eu realmente tinha um terror, um medo incrível de me enfrentar,
de olhar para mim mesma.
Seu
mundo caiu. Agora parece de pé, já não lembra o Comigo me Desavim do Sá de Miranda. Você já pode ficar com você?
-
Acredito
que hoje eu teria capacidade para viver só, porque já me aceito, já me aguento,
tenho conversa comigo mesma. É preciso que você tenha alguma coisa dentro de
você para poder ficar sozinha e não se desesperar. Hoje em dia, é claro que não
desejo porque adoro ficar com o Carlos, mas eu tenho esta felicidade de poder
ficar sozinha em paz. A descoberta do interior da gente é um caminho que não
tem mais fim, uma estrada sem retorno.
Foi então a descoberta deste caminho que a levou a
viver numa praia distante, onde a luz elétrica ainda não chegou e cujo endereço
você não dá para que as pessoas não cometam o despropósito de levar para lá os
apetrechos da civilização. Civilização, esta que se chama Rio de Janeiro, agora
só aos domingos. No mais, é curtir o sol, a praia, o peixe e Carlos Alberto. E
o Carlos?
-
Carlos
e eu somos o encontro entre duas pessoas que tem muita coisa a dizer uma para a
outra, um encontro feito de amadurecimento. Ele passou por muita coisa, eu
também; e nós já sabemos distinguir o que é bom e o que não é bom para nós.
-
Bom
é não ter hora para nada, é acordar de manhã com os passarinhos cantando, é
praia, é peixe tirado na hora, é viver no mar, porque eu sem mar não sou gente.
Mesmo na minha época de zorra, eu
tomava meu pileque, mas as sete da manhã estava na praia curtindo o pileque ou
começando outro. Eu tenho a impressão de que sempre vivi esta vida, aquela fase
de zorra é como se nunca tivesse
existido. Não estou dando uma de me isolar do mundo, é tudo tão mais completo,
tão maior, dentro de uma vitalidade que o sol dá! Não sei bem explicar o que eu
faço. Leio pra burro, pinto, ouço música, vivo. Pesca submarina? Já fiz, mas
agora, fumando quatro maços de cigarro por dia, o fôlego não dá!
Foi-se
a Maysa amarga. E o que é da Maysa agressiva?
-
Agressiva?
Ninguém pisou no meu calo! Se me tratam bem, eu trato bem. Se me agridem, eu
agrido. Apenas respondo e isto é humano. Não faço gênero. Só não gosto que me
pisem no calo. Essa história de levar um bofetão e dar a outra face, eu não sou
cristo! Se o fato de você se defender, de ter respeito por você mesma, é ser
agressiva, então eu sou muito agressiva.
Eu
creio
-
Creio
em Krishnamurti, ele está certíssimo: Não de nome a nada, as coisas são,
puramente são. Se eu for para você como uma ideia preconcebida, está tudo
errado. Atualmente, há um movimento de aceitação muito grande do homem pelo
homem. O homem está descobrindo que é capaz de coisas que nem mesmo ele sabe.
-
Creio
no que se pode explicar racionalmente, cientificamente. Não acredito em
fantasminhas. Leio tudo e faço as minhas deduções. Religião? Não, tenho a minha
filosofia de vida, sou Rosa Cruz. E acredito no Karma, profundamente. Eu
repetiria tudo o que fiz, porque era uma coisa pela qual eu tinha de passar.
-
Creio
que até dentro da involução existe uma evolução, e, para evoluir, você tem que
andar na vida até ir encontrando.
Dito
o credo, Maysa passa a falar de sua música,
do que significou e significa. Aquelas músicas de fossa profunda representaram
uma fase da sua vida, tiveram uma razão de ser, não foram fabricadas para o
consumo dos que tinham dor-de-cotovelo. Se consumidas foram, foi sorte do
acaso.
-
Eu
nunca tive a intenção de chegar para um sujeito e dizer: quero gravar isto. A
única música que fiz para ser gravada foi aquela do meu personagem no Cafona, o Tema de Simone.
Meu Mundo Caiu, conta, esteve guardada
numa gaveta pelo menos um ano. Um dia, um amigo, dono da RGE, chegou na casa de
Maysa e começou a futucar nos seus papéis. Achou a poesia e puxou o papo:
-
O
que é isso?
-
É
uma música que fiz para mim,não tem a menor importância.
-
Mas
isso é formidável!
-
Formidável,
não, é terrível!
-
Formidável,
sim, porque no caso eu sou o homem que vai pagar pra isso vender.
-
Então
venda o meu estado de espírito.
Um
Love Story à brasileira
-
Eu
nunca deixei de fazer poesia, porque sempre passo para o papel os meus estados
de espírito. Atualmente, as minhas músicas ainda estão em forma de poesia,
esperando a música chegar a qualquer hora. O que dizem? Não sei te dizer,
porque num dia a gente vive tantos momentos, tantos estados de espírito. Eu
gosto de música que sai de dentro, e o que sai de dentro nem sempre é alegre.
Só se deve dar nome às coisas, então eu sou uma romântica. Gosto de ver beleza
na vida e nas pessoas. Se você consegue aceitar três defeitos nas pessoas, você
está em paz com o mundo.
Maysa
quer estar em paz com o mundo e talvez por isso não se interessa em gravar os seus
estados de espírito. Ainda está na sua cuca aquele caso com aquela gravadora: A
dita queria que ela gravasse um Love
Story em versão brasileira. Maysa recusou-se, dizendo que aquilo não fazia
o seu gênero, mas os caras forçaram a barra sob a alegação de contrato. Ela
então gravou a coisa, mas pediu demissão da gravadora.
-
Não
é uma questão de temperamentalismo, apenas eu faço o que gosto. Senão não tem
sentido. Então, eu vi que o esquema estava se formando nesse gênero: gravar
para ganhar dinheiro. Eu não quero entrar nesse esquema. Não quero dizer com
isto que eu esteja nadando em dinheiro. É que a minha vida profissional é uma
decorrência da minha vida pessoal, e me parece muito melhor ganhar um pouco
menos, mas viver bem comigo mesma, do que aceitar coisas que criem vibrações
ruins.
E
para evitar estas más vibrações da máquina,
Maysa quer, ela mesma, produzir os seus discos, como já fez duas ou três vezes.
Está estudando as músicas para um LP, que deverá ter apenas três composições
suas, incluindo nas demais alguma gente nova. E pretende também formar um
grupo, pois quer um trabalho uniforme, tudo muito afinado.
Depois
de O Cafona
Compositora,
cantora, depois atriz. Atriz não muito bem sucedida, é verdade, mas ela fará
uma nova tentativa. Desta vez, no cinema, interpretando uma personagem de quem
não sabe ainda sequer o nome. Sabe apenas que as filmagens devem começar em
outubro e que os seus pulsos batem como os de uma criança diante de um bolo
confeitado.
E o
teatro, deixou?
-
Nunca
deixei porque nunca entrei.
Aconteceu
que depois de O Cafona, Maysa quis
dar um salto mais alto com a peça Woyzeck.
-
Caí
redondamente porque foi realmente uma coisa mal estruturada, sem base, mas
valeu a experiência e eu gostaria de futuramente fazer uma coisa realmente
palpável.
Ela
e Carlos Alberto tinham programado levar em Belo Horizonte o Depois da Queda,de Arthur Miller, mas
desistiram quando Maysa ficou esperando o bebê, que perdeu. Há pouco, Carlos
Alberto foi convidado por Victor Berbara para fazer a peça do Teatro Copacabana
e recusou porque não quis entrar no esquema de ensaios, que lhe ia tomar muito
tempo.
-
Estamos
mais naquela de praia, mar e encontro, porque faz um ano que estamos juntos e
estamos nos conhecendo. No momento, queremos nos curtir e curtir a vida.
(Reportagem publicada originalmente na revista A CIGARRA, em agosto de 1973; agradecimentos ao leitor do blog, Edson Luiz Mendes, que tornou possível a publicação desta matéria.)
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