6 de agosto de 2013

Texto: Maysa na pintura e na lembrança, de Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade

Maysa na pintura e na lembrança 


Não sei se a pintura de Maysa é boa, não sei se é má. Sei que a pintura de Maysa, agora exposta na galeria de arte do Teatro Vanucci, me comove. Não fui vê-la: basta-me a notícia da exposição para sentir como tudo que é de Maysa chega até nós envolvido de paixão, de luta existencial, de vida em conflito com a vida.

Ao ler que não foi só cantora, compositora e atriz, mas também pintora, escultora e poeta, e sem entrar na avaliação de seu mérito em cada uma dessas formas de expressão, não tenho impressão de insegurança, superficialidade ou vaidade em busca de sucesso. Imagino antes que em cada tentativa de Maysa para se afirmar num setor de criação, havia a procura lancinante de forma de doação ao mundo – a forma definitiva. E essa doação seria de amor, no sentido mais perfeito da palavra, que é antes estético do que sentimental, ou seja, o ajuste completo das potencialidades do ser às potencialidades do mundo, em harmoniosa composição.

Esta composição de amor pode começar no plano individual, como entendimento psicofísico entre dois seres, mas alastra-se até a comunhão com a humanidade, cuja expressão intemporal me parece residir no plano da arte. Seria vão dizer que Maysa procurava apenas o status cômodo de uma pessoa integrada na condição de cantora ou pintora. Prefiro acreditar que tinha sede de comunhão, e buscava-a de todos os modos. E as artes em que procurava exprimir-se eram outros tantos caminhos para chegar a essa finalidade. As formas contingentes de amor não lhe bastariam.

O sucesso de um disco ou de um show ficariam aquém do seu projeto subconsciente de vida.

Por tudo isso, teria de sacrificar-se. Uma bela mulher talentosa que não se satisfaz com sua beleza nem com seu talento e procura alguma coisa mais do que isto, sem encontra-la, não por serem limitados os seus dons, mas porque a vida se encarrega de gerar situações críticas. Sobrevém o choque, o desejo subterrâneo de auto-imolação, que vai cortando as possibilidades da artista. O amor-criação não encontra correspondência adequada no grupo social, que deseja apenas aplaudir a cantora da dor-de-cotovelo e da solidão, sem perceber que atrás dessa música dolente há um enorme coração ligado a uma irrecusável ansiedade artística. E esse coração destrói-se aos poucos.

Seu fim, mesmo inesperado, é compreensível. Uma vida cheia de tensões, de insubmissão às regrinhas miúdas do jogo, teve o desfecho dramático que coroa sua tragicidade espiritual.

Poupou-lhe a velhice, a doença congeladora, a exaustão das forças profundas que comandavam sua inquietude. E convida-nos a pensar melhor nessa rara figura de mulher cuja voz ressoa sempre a nossos ouvidos como portadora de uma carga emocional diferente da comum emoção de intérprete. Maysa interpretava-se a si mesma, não a autores de suas canções. Era ela, atirada de corpo inteiro no torvelinho, na dor de viver e de pedir à vida o que esta esconde ou nega aos mais exigentes e aos mais generosos. Maysa completa, identificada com o texto, pairando na melancolia.

Não sei de cantora que assim me transmitisse o sentimento de unidade entre o canto e o veículo humano, na área que ela ocupava. Decerto a televisão ajudou a fortalecer este sentimento, pois a imagem de Maysa envolvia sua interpretação como o vestido ao corpo, se não era o corpo que imprimia ao vestido essa autenticidade. Compreendo muito bem o fascínio que exerceu sobre Manuel Bandeira, através da figura, reduzida praticamente à boca e aos olhos: “Os olhos e a boca de Maysa se entendem, os olhos dizem uma coisa e a boca de Maysa se condói, se contrai, se contorce, como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão”. Só uma gota? O belo destino destruído foi atraído ao léu por uma onda de amaritude.

Restam discos, quadros, esculturas, palavras. Restam as fotos. E uma história truncada que poderia ter sido feliz, mas que foi, sobretudo, dramaticamente humana em sua confluência de amor e arte.


(Texto publicado originalmente na coluna do escritor Carlos Drummond de Andrade, no jornal FOLHA DE S. PAULO - quinta-feira, 22 de junho de 1978)

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